Percepção de ser
(Por Oniodi Gregolin)
Não era de esperar menos disso tudo. Do lírio branco que dava boas-vindas até os quadros que cobriam as paredes da escada, os poucos metros do portão até a porta saudavam a chegada já marcada dias antes. Desde a rua o ar tinha cheiro de arte, um pouco de lirismo misturado à terebintina. Enquanto subia, era solvido juntamente àquela mistura de cores e imagens, esperando que atrás da porta estivesse a artista. E estava, tão colorida quando as telas. O vestido que a cobria dos ombros aos pés trazia, por semelhança, as mesmas flores que adornavam muitos dos quadros dispostos pela casa. “Bem-vindos, entrem e fiquem à vontade”, era o convite para mais uma estada fascinante.
A despeito da fascinação, não era a pintura, uma das grandes vertentes artísticas de Tere Tavares, que nos trouxe até ali: apesar da singeleza que também traz com a ajuda das tintas, eram as palavras que me seduziram outrora. Quiçá fossem apenas as cores, os versos de Tere – acredito eu – têm força de atração capaz de arrastar qualquer coração que não se sacia com o óbvio. Ainda era tinta o que permanecia arte até aquele momento.
O tempo, fracionado em uma centena de minutos, foi o bastante para me fazer imergir numa vertigem de pensamentos. Como em outra ocasião, esta se fazia ainda mais especial. Antes, nada conhecia de Tere, mas desta vez os outros da poeta e pintora estavam comigo. Meu pensamento se propunha a escarafunchar no que ainda lembrava, em versos soltos, em palavras minimamente escolhidas. A de aquários diversos, como se definiu em algum poema que vaga pelo meu pensamento, fez cortesia: convidou à sala e serviu café. Do pensamento que vagava em estrofes, voltei ao chão. Tento estabelecer contato com a realidade, mas uso das palavras de Tere: “estabelecer não me cabe e se me cabe não estabeleço”. Minha realidade divagava em fantasias.
A história da poeta, contava-me, teve início ainda no Rio Grande do Sul. Lá, em terras mais frias, foi que começou a sentir a arte pulsar nas veias. Qual veio primeiro? Não tem certeza, mas supõe. “Desde criança eu gostava de desenhar e de escrever. Já na escola eu recebia muitos elogios pelas minhas redações. O desenho e a palavra sempre estiveram comigo, mas acho que foi com a pintura que me identifiquei mais no início”. E deste início Tere busca no quarto alguns desenhos e pinturas feitos na juventude. Da cabeceira da cama, traz uma pequena tela com uma jovem desenhada: “Essa é do meu marido. É a preferida dele”.
A carreira de Tere deslanchou num caminho inverso à arte. Depois de formada, trabalhou em alguns empregos, mas se firmou mesmo como bancária de uma instituição pública. “Eu queria mesmo era fazer faculdade de belas artes. Mas naquela época tudo era mais longe, mais difícil. A mais próxima era em Santa Maria, mas tive mesmo que optar pelo curso de economia em Cruz Alta”. Talvez a formação tenha sido o que desvirtuou Tere do verdadeiro caminho que deveria trilhar. Reside em Cascavel há alguns anos e foi aqui, já aposentada, que a arte voltou a falar mais forte.
Ao entrar na casa da artista, é perceptível o quanto clama. As cores, o traço, o movimento, tornam o incauto visitante hipnotizado. Quando conheci Tere, na primeira vez em que estive na casa da poeta, ela me presenteou com um livro. Até aquele dia não fazia conta de quem seria ela e nem do conteúdo do que escrevia. Para minha surpresa, saí da casa carregando um livro que devorei em poucos dias. Na primeira página, a dedicatória profética do que seria feito de minha leitura: “Algo das almas que trafegam em esferas inaudíveis, porém perceptíveis”. Ao sabor de Tere, delicio-me até hoje com poemas que não me privaria de colocar ao lado da obra de grandes poetas. À natureza, ao lúdico, à tristeza, ao segredo, à súplica, à dor e às ambiguidades, é fácil de encontrar, na obra de Tere, odes tecidas em louvor a momentos e fragmentos de uma realidade tão só e singular como a de uma poeta.
Da vida dela, conta-nos pouco pessoalmente. É moderada em palavras faladas, quando na escrita se descobre uma artista escondida: “No dia em que nasci deram-me as heranças de todos os nascimentos, as vidas que não lembro ter vivido, o propósito, em natureza e sabedoria, inexpugnável ao meu estado humano”. Da felicidade que se atém absorta no íntimo em poemas também revela: “A pergunta de estar bem, direi sim, e será verdade, como é verdade o cio da chuva, que namora a noite, e se enamora de si, e transborda de infinito, e me sorri os amores, no essencial extenso de vivê-los”.
Decifrar um poeta é das coisas mais difíceis de se fazer. O semblante feliz que se revela, com a casa em ordem e os quadros em harmonia pelas paredes, sempre esconde algo e é nas palavras escritas que transbordam o verdadeiro existir. Não haveria nenhuma entrevista que pudesse trazer qualquer descrição de quem realmente é Tere Tavares. A conversa, útil às vezes, traz apenas algumas dicas e aponta para quais caminhos seguir. “Eu descompasso o atraso da realidade que amarrei na lua. Eu desamarro o muro de tijolos enjoados de serem sujos de massa. Eu suporto e mostro os dentes. Eu trituro o medo. Apenas eu, sem eus, tão menos, tão justa. E isso tudo?”. Ao redor, ela me mostra bravura. Os quadros pintados com esmero de quem calcula cada pincelada para que não padeça em dor. As palavras, concisas e breves, para não deixar de dizer pela limitação.
Ao continuar nessa leitura de semblante, de palavras, de traços, continuo na vergonhosa batalha fadada ao fracasso. “A noite pede explicações, sim eu sou sutil e minha dança é um véu inviolável, vê? Está ali o ideal de mistério, fácil e sem nome, acenando para mim”. Os olhos claros pousam sobre mim. Ela me conta histórias que prefere que fiquem ali, naquela sala. Conta-me algo de limites e é nas palavras escritas que encontro semelhança para o olhar que novamente pousa sobre mim: “quando é branda a calmaria das horas a quem tem a eternidade para si”.
Saímos da ampla sala para o pequeno ateliê. Vim até ali em busca de palavras, mas acredito que nas duas artes é que é possível desvendar Tere. Do dia em que a conheci durante a posse na Academia Cascavelense de Letras até agora, nenhum vinco de sombras inexplicáveis foi preenchido. Até agora. Ao abrir a porta do pequeno quarto ela brinca e ri: “Não vai rir do meu ateliê. É tão grande que terei que esperar do lado de fora”. Uma tela repousava sobre um cavalete. Cheirava óleo e terebintina. Fotografo e miro nela um pouco mais da artista. Ali, guardada, feita passo a passo, com cautela de quem não pode avançar rapidamente, entendo um pouco mais de Tere: “Cada dia é um oráculo que me circunda”.
Fecho a porta do ateliê e já vislumbro a rua. É quase meio-dia. O lírio branco que saudava a chegada também fazia despedida. Não há cerimônias para a partida, mas alteio a artista que por tropeço conheci. Dos poemas de Tere, novamente faço recurso para me despedir. De nome Percepção, a melhor descrição que pude encontrar: “Sempre sinto o que penso. Não é vício de sombrear. É antes o aspecto irredutível de uma luz que me toma de empréstimo. Sem o direito de arrancar o raio, resta-me o curso furioso das mãos, o som fluido das palavras”. (Oniodi Gregolin)
Publicado no blog Canto da Cultura:
http://cantodacultura.wordpress.com/2009/11/03/percepcao-de-ser/