quinta-feira, 24 de outubro de 2019

"Campos errantes" de Tere Tavares - Prefácio

Prefácio por Carlos Emílio Corrêa Lima



Literatura em estado de ânimo

Exercícios cósmicos de um novo sol, fêmeo, de mar doce e longo, sinuoso, um novo sol de estio e estilo. Depois, prontas as águas da escrita-chuva, chovem por novos sulcos da terra, súbitos outrados sentidos, rioutros. E se ergue uma onda de mar de dentro da selva salva da escrita nesta inédita timbragem textual de fibras, ondulações de sentido, conexões novas entre coisas que jamais antes haviam se unido nem em Dante; nesta escritantena, encontra-se o que nunca fora pensado e sentido anteriormente e, desse modo, mostrado a nós, leitores desacostumados ainda a isso que ali surge pela primeira vez. Mas não é neosurrealismo embora pareça, também não é o método cut up do William Burroughs aqui tamborilado, não é herança da poesofia dramática de Clarice Lispector, esse tom desconhecemos, versos que saltam de uma prospecção frondosa de uma prosa assimétrica, ao absurdo que é bordado com fios e cabelos doidos de uma avestruz linguística que ciclomeu dos frutos de ouro longe, das bordas do invisível. Sabemos invisivelmente como é, ping e pong de tintas e tudo começa a pintar-se de uma outra forma, com desexatas desatadas novas configurações. O figurativo aqui instala-se abstrato, nada que se pareça com as formas habituais do escrever e do dizer a que estávamos acostumados. Os verbos soam sempre mais longe do que ser, haver e estar, os verbos escolhidos e colhidos entre estalos de cristal e rugidos de silêncio que os torneiam de novas peles, outras conduções ideativas. Tudo cresce 10 textualmente, proliferante, nesse enverdecer do dizer, nesse manual de estilos aleatórios autodiccionais. E de modo algum são também gongorismos desestudados, aqui estuados em pleno século XXI, rotores dados. A maioria dos textos aqui porejados são perfis, gênero literário que vai muito esquecido, abstradamente aqui praticados com esmero e interlúdios. Rilke e seus conselhos a um jovem poeta transita em treliças por aqui, essas intercaladas sinuosidades, esse método outro do dizer. Não há modo previamente existente de se avaliar essas frases riquíssimas, de imagens ambivalentes flutuáveis, que são mais do que frases estéticas, palavras a escorrer. Segue então essa nova forma de realizar imagens, forma mais incorpórea, porque não familiar, resina fresca. São poemas sem espaços entre os versos, parecem textos de propagação de uma estranha espécie de inteligência sobre-humana, mais do que artificial, onde as frases decolam de si mesmas para o que não sabem, foras das cores e formas conhecidas.

Não são contos, nem poemas, nem prosa poética, nem poemas em prosa, nem crônicas aladas de efusivas transparências velocíssimas, mas novos almejamentos, novas vontades da e 11 inacessíveis, inatingíveis cambiantes fluxos fraseônticos. Muitos, ou quase todos os trechos dos textos desse livro são de uma luzência hermética atordoante. “Campos errantes”. Este livro autodenomina-se assim, é o que melhor exemplifica seu movimento, cada capítulo-conto-perfil-mancha é um minucioso manifesto estético, com minúcias e fímbrias jamais vistas. Cada vez mais, à medida que vamos nos adentrando nele, ocorrem citações invisíveis, uma filosófica narrativa, pois o narrador é um coletivo de um ser indeterminado, que não se manifesta fisicamente, não sendo portanto, um narrador autoritário. Um narrante errante coletivo universal. Alguns dos textos em coro fractal desse livro de Tere Tavares me fizeram lembrar o primeiro livro de contos de Gilmar de Carvalho, seu isolado e desbravador Pluralia Tantum, publicado em meados dos anos 1970, pois também esse livro cearense-universal enfeixava experimentos em cada uma de suas entradas e picadas na mata da linguagem.

É como se voltássemos, em outro nível do tempo, em outra enseada e vertente da história literária às manchas e fantasias, às silhuetas, gêneros literários não mais nomenclicados hoje em dia, como se estivéssemos num interregno, numa mudança de rumos dos rios coletivos da linguagem. Estamos num pré-nascer de uma legião de sucedimentos de uma linguagem-pensamântica prosperante que ainda não sabemos, e nem podemos com os recursos teóricos atuais, delinear. Esses textos expõem-se soantes exuberantes em suas pré-formas, desdirecionando tudo a que estávamos ritmados. Trechos de flora teatral, filigranados, línguas botânicas, bafejam seus dramas de elixir em nervuras e grafemas entrincheirados. Personificações, prosopopeias, ilusionisimos, vertigens, clarividências, fibras cantantes, estrelas falantes, frases farfalham como galhos a beber nas suas 12 atiladas pontas, águaluz. Muitos dos pós-contos aqui parecem a tradução em palavras de um vitral art-noveau de ferro e vidro multicor, náutico-alado. Tudo no “lápis do improviso”, ou pictóricas teclas líquidas de tinta do escrito, segredos fonéticos do acaso estruturado são ditos em remos buscantes e folhas reposicionadas, repronunciadas. As citações, as frases das falas escritas entre aspas, onde cada frase é um manancial que se refigura e que se conjuga a outra frase-manancial numa tapeçaria líquida que nunca se evapora, fluente de dizeres escritos na fímbria do insistir adentro do espaço a que nunca antes se chegara, pois são dizeres nada cuneiformes, sempre glissantes e mutantes, num desarquivamento-relâmpago, são poemas numa nova forma do escrever... Flashes, perfis-flashes. Um misticismo arcaico e esotérico que se fantasia de novas particularidades. “Captura da ancoragem”. Frases quase incompreensíveis – e o que mais belo que isso? – em busca de psiquês. A narrativa nunca é veio, mas se incorpora em forma de cantaria caligráfica, desepicentro amarelo de todas as cores móveis, água vidente de vias e rumos, tendões de água direcionada, de jatos cruzados vindos de todos os sentidos, uma nova prosa simbolista à vista da leitura, jogos pictóricos da linguagem, uma reciclagem dos símbolos, uma linguagem com milhões de lados, uma poeira sonora de mitos porosos, desconexos, dos espaços regirados ao contrário do contrário. Máximas misturadas com narrativas, e narrativas em miniatura, novas citações, aromáticas, de aromas que fogem a qualquer som e significado. Mergulhando e entrando no sentido e saindo fora dele, de qualquer significação mesmo aquelas mais fora de tudo que até então havia sido dito ou entoado, axiomas ditirâmbicos fora dos âmbitos, um manual filosófico de mil sendas ambulantes, caminhos libertos de suas rotas e acrobáticas estradas que saltam no infinito. Gritos e 13 calmores em dúbios e ambíguas nervuras tipográficas, silábicas, sonoras, flutuantes estórias não-narrativas, quentes clamores do escrito. Os versos são escritos nas frases, sem problema, com relativismos em constante aceleração imagética, tecendo velozes combinações verbais inconcebivelmente transitórias em sua externa casca textual, nada ruidosa, silenciosamente discursiva. Poemas textuais. Transistórias. Não-estórias, transístores. Quase perfeita e esmerada, navega a embarcação de esmeralda altíssima da escrita, com seus enigmas florais intervaladados, do recém-inventado ultra-dizer, treliças trêmulas de orvalho e leitura interestelar, proliferação de signos inovados, compêndio de experimentações textuais, como jardins indecifráveis, oscilantes. No final do livro, depois dos grandes voos de tapeçarias flutuadas navegantes, há três contos e meio mais narrativos, agora mais como flutuações mais estruturadas sobre a grande trama da água da linguagem da autora, que são como réstias de um livro futuro de suas mil e uma mãos. Este aqui é, entretanto, um composto experi-mental de iluminações, seus eternos cadernos da linguagem recém-chegada do desconhecido.

Carlos Emílio Corrêa Lima – Fortaleza- CE