quinta-feira, 17 de março de 2016

So quem nasce pássaro fere o dorso com asas

Só quem nasce pássaro fere o dorso com asas

Quando a incerteza lhe suga a umidade, a pele exala a sede dos passos, a descendência das colorações, das searas na erupção das sementes, o calor dos astros e o arrebol de raízes indizíveis, das fimbrias da terra. Como cascas para além das clausuras, vê-se, à mesa ligeira, um alvo minúsculo posto à prova.
É como o solo dos cardos apertando-se nos prados abertos a cada beijo fito nos mastros de ontem; como um tímido tumulto arfando sobre as tulipas. Desce desmedido o rosto de música vindo de longe, muito longe, estrada e casa. Em soluços ascende-se na inebriante presença do espírito absoluto. Parecer-se a algo para ser alguém, ser alguém para ser um, ou nenhum. E é calor perfumado e quase frio, orientando os arrulhos, o meio-dia que, aos poucos, o conduz ao silêncio que se diz e o dirá, se dará ou será, como se, ao olhar-se, revirasse a eternidade, ou tornasse as fábulas absolutamente reais, para prodigalizar cada segundo em magnífico ideal. Como um outro vindo de si para abrir trilhas e ver, depois, as manadas a pisar o mesmo pasto. Não necessitava adiar a urdidura do seu íntimo. A quem pertenciam afinal as trincheiras?
O fato de ainda respirar, a cinza das águas sempre obedientes à chama, ao cinzel corrosivo de uma alegria nunca sonhada, anunciavam-no qual aroma suspenso na língua silenciosa da erosão. Desocultava-se do encarceramento e simplesmente acontecia. Partindo os juncos, sem diminuir-se, no convexo da nuvem, como se tivesse livros na ponta dos pés, dando ritmos ao som das manhãs. Temia que lhe saísse, pela linguagem, o relicário da alma e fosse morar em drusas de névoa, em florestas irresistíveis, plenitudes, como se, ao dançar, se imobilizasse.
Vem para conferir a fome estonteante do traço, mas alguém lhe dá ciência do que está para além da cor e da forma. É a carne dobrada; o corpo desconexo que salta no escuro, dando-se ao tempo, à indeterminabilidade, à minimidade de tudo o que sente. Percebe e remexe, além do seu itinerário de ostra sem concha, a mina d’água cuja fortuna é somente escorrer dentro da sede: “Conheço-me só nessas gotas, nesses bilros conflitantes de borbulhas e membros doridos. Que acidez me cobre as feridas? Isento-me de tudo, sobra-me uma quase fuga ou desistência, o desencontro da sanidade para prosseguir como fui antes que me fosse infundida a perfeição das máquinas, o desagrado das gentes, os desenganos, a impossibilidade a me cercar, tolher, bramir, submeter. Sou córrego e planta, vitória-régia, ninfeia, limo aguçado a porfiar-me de petúnias, voz clandestina, digna e repleta, que habitam as mãos nuas e cabisbaixas, solo a par do solo... colho a poeira, a dança no escuro, o que restou no desencarceramento da ternura, único círio cuja chama não se dissipa nem adormece, e vem banhar-me, isento de faces. O céu geme o meu silêncio, a metáfora inconclusa que de mim transborda”.
Distraem-se a mente e os soluços nas denúncias do inverno, no perímetro do tempo que, colorindo-se de vácuo, sorvem a flor comunicante que não finda quando eclode, em secura de fontes e seivas, na biologia dos diálogos imperceptíveis, nas dores insistentes, como se lessem as pétalas e pintassem farpas nas tranças, num debrum oxidado de luas – matriz de ar e de crepúsculo. Ele é os desencontros pretéritos, esfumados em palavras invisíveis que a liberdade tece numa voz de elo, e, no calor difuso das geadas, descobre que o segredo é invadir a estranheza das coisas.
Ele planta as cores que não cabem na ânfora ao obedecer à sinuosidade do amor – no matiz gradual dos olhos, o pulsar do impulso de proferir-se, como se, em suas espáduas, tatuasse algum sentido inusitado. A sua alma é também o mundo – ninguém a difere do que é. Exceto a armadura de sonhos que jamais deixa de ser o lado em que nasce inteiro e seguro de si mesmo. Quando então acorda próximo aos caules do ocaso, à sincronia ardente e silenciosa cicunscrita nas migalhas nunca proferidas, sorrindo seus reflexos à lingua exangue d'água – para, e só assim, compreender que a descida é posterior à escalada.
(do livro "Vozes & Recortes" Editora Penalux 2015)
Tere Tavares
Cascavel - PR - Brasil
Agradecimento especial à Carmo Vasconcelos e Henrique L. Ramalho , de Lisboa, PT, pela publicação na Antologia LOGOS Nº 19 MARÇO - 2016. Página 42/Prosa.