sábado, 24 de março de 2012

Quando a água é também a terra



Quando a água é também a terra

Não viram nem perguntaram se estava com fome, tampouco sentiram piedade ou qualquer sentimento semelhante; o dessemelhante simplesmente não sente.
Veio o irrefreável desejo de saudar a despedida, como um presente sem destino – a santa armadilha de ir. Ou vir em orlas de silêncio para não destoar do hipocritamente calado. Escusas de uma inquebrantável estrutura por debandar. Havia sobre ela óleo e grafias tão sutis com erros desveladamente sussurrados como para arrematar o infinito feito a seivas e desertos.

“Onde fui que não mais me vejo? Onde estive cá dentro a pestanejar a madrasta que me dá esses filhos? Perdi-me na fatalidade que não quis. Fiz-me na fúria involuntária de um hino estridente – a balbúrdia a que chamam de chamados. Eu derramo essa chuva de escarpa porque talvez o futuro não exista senão oculto nessa descrente esperança”.

Onde sobra escassez não falta divindade a par de tornar-se – estrelas puídas viram aplausos para dissuadir o sossego. O dia trará a noite e suas alças intratáveis, a noite premeditará o amanhã e o sol nascerá como sempre para desejar outra coisa e segregar razões, para redimir o torpor que calará o corpo e assomará do irrecuperável  um futuro menos abissal, junto ao sal, quiçá, junto a nada: “Não existisse o amparo nesse teu ombro, em que fulgor repousaria os meus pés que insistem em não penetrar-me a fala que se solta em três silêncios, vinte e um mil intervalos. Que seria do meu alvorecer se não houvesse nele olhos sequiosos de ti, que diria a minha pele se sobre ela não pousasse a voz das tuas mãos? Deus não me faria entrar num lugar onde não fosse possível a Sua proteção.”

Foram-se os guardados, a vontade imersa seria para longe, algo que lhe poupasse um pouco as estranhezas que carregava, mas não apenas isso. Dois patinhos na lagoa: uma data como outra qualquer. Nenhuma lágrima brotou. Nenhum sorriso. O tempo e seus duendes irrequietos mereciam um novo itinerário. A mão acalentada junto ao peito. A solidão impreterível e sábia teria todas as horas de um aqüífero rosado.  Como antes, como sempre. O olho ávido não subornava nada, ninguém. As águas concentradas no curso antigo, vago. O cheiro de resina vogando em tudo sem causa ou crença. Um pacto. Um fato. Uma casa em outra rua. Um quarto vazio. Maior. Um coração alegre e ditoso.  No centro. No meio. Sem fim. Mas não sem finalidades.

 Brilhou ao saber que não havia nada maior que sorrir ao divisar um horizonte talhado de pássaros, como painéis entretecidos na renda dos fios de Ariadne. Não rejeitaria a semente cujo desejo era tão forte quanto à gota que lhe daria os brotos, as raízes... os denominadores inesgotáveis das estações aceitando brandamente  novas semeaduras, cada instante que sonhasse ser tempo no ensaio da vida.

As razões das águas são livres, como é liberta a sede que não cede enquanto não saciada – o feitio das orlas, de todos os remos e barcos por conduzir. Nada comparado ao bálsamo das lezírias recostando-se no buliçoso remanso do que é comumente esquecido.

Recorda-se do que foi primeiro, último, perfeito: “Se me vissem não me desejariam talvez sequer olhassem – a vida a escorrer por entre os dedos, supondo que algo surpreenda o impossível para salvar-me do entorpecimento do ânimo num receptáculo ondulado transcendendo àqueles que me desconhecem. Em todas as coisas há vozes confusas, para mim que as ouço demasiado altas temo que seja perigoso dar-lhes conclusões. Não chamarei com o próprio nome o lancinar voraz que me ronda... a alada alma que é minha por não ter-me recusado a adotá-la – não se abandona ninguém quando se conhece o suor do abandono –  tento entende-la ciente de que permanecerá em marés rebeldes, submergidas no incessante desentendimento do meu rosto. Sonhei que sentia frio ou foi o frio que sonhou ter adormecido comigo junto aos corais, a cada sopro  quebrei o silêncio sem machucá-lo.”

Não havia mais ninguém no jardim do éden que pudesse coincidir com o estrondo dos sinais, vindos propositalmente sem nomenclaturas, nas convulsas texturas do tempo – suas misturas de solo e miniaturas de sombras, a correnteza das águas diagnosticando o sorvedouro onde se dobra o que não prescinde ser apenas diferente ou mais que mortal – na diversidade dos olhares saberá qual considerar – no paradoxo incomensurável do mundo que, célere, não suporta indecisões. Um interlúdio entre o metafísico e o humano – o dia não se finda quando a noite inicia.

Detém-se para retornar noutra sonoridade, na orquestra onipresente dum espelho inesquecível, limpo da bruma: “O que fiz do que não fui? Continuo rodeada pela depuração das fontes, suas chuvas ensolaradas. Dando por mim que a divindade mesmo não sendo santa, continua a ser divina. Coberta de lua nascente, ouso onde nada há para retirar além do excesso de perfeição. Como dizer que era eu aquele grão de pó renascido no dorso das águas? No regresso dos ruídos, a rota úmida da cerâmica bebericando a forma, o dom de atemorizar o medo numa feitura apoiada no vento, dourada nas searas, no fluxo da terra remoçada pela explosão sem fim dos rios. Assinando-me de mim mesma”.

Texto do livro "Entre as Águas", publicado originalmente  em:

quarta-feira, 14 de março de 2012

Feliz dia da Poesia



Das linhas antes minhas

perdoai os versos dúbios,
as não-conclusões.
eu me afeiçôo
ao fervilhar das idéias;
induzo e vós deduzis,
insinuo e vós pensais.
ao fazer me desfaço,
ao escrever me despertenço
sobretudo, sobre mim,
instigo-vos.


Monólogos

I

o mundo vai além das minhas dúvidas.
há em mim ramagens estranhas.
diria, tenho nas entranhas, 
todas as árvores do mundo.

admiro a possibilidade que sinto múltipla por ser simples
e, sorrio à que percebo complexa por ser única.

deram-me o amor para existir
e, no que amo, a existência suprema e lenta,
instala seu lume.
e só de plumas é o anjo que me pensa e sente
a jura de alegria com o soluço da mente na boca.

toda minh’alma é um lenço convulso por entre as folhas.

II

as coisas com que falo
têm a voz dos princípios e desertos,
têm todas as vozes dos perdidos,
e me seguem, ouvindo.

me aquieto no escuro
como quem foge ou se esconde
e, neste esconder, cubro-me
de um ser tão ínfimo para o mundo,
quanto é branda a calmaria das horas
a quem tem a eternidade para si.

quando a ausência de tudo está em mim,
sinto-me, em tudo, mais presente.

durmo, e não sei a tranqüilidade santa
de quem, verdadeiramente, dorme.

cada dia é um oráculo que circunda 
e realça o sentimento, e na leveza que me enleva,
vislumbro a sombra que me inunda
e a luz que me sucumbe.


III

a felicidade é um esquecer-se,
um estreitar-se num segundo, 
antes que passe.

o assédio sábio da lua
me investiga as emoções.

falta-me a exatidão de quando deixei de sorrir;
consigo supor
que o perdi na lentidão sucessiva dos dias e das noites.
também não atino quanto se passou de vida,
entre o sorriso perdido e a dor que aprendi a sorrir agora.

sou a liberdade que tem de si o gemido silente,
o gosto de cada passo no descompasso de tudo que vive.


IV

de fato, sinto que existe 
a nesga bailarina plena de vida
e, guardo-a num horto qual hóstia fosse
e, rezo-a, no sigilo da alma,
nos meus olhos de menina.

é tão indelével o que se tem da existência
que em tudo cabem inúmeros propósitos.
não fujo de falar comigo:
se é minha vontade entender-me, inicio por estudar-me.

:#Texto do livro Meus Outros 2007 - 
e Tela À luz dos livros OST 30x40 2006:
By 
Tere Tavares#:

quarta-feira, 7 de março de 2012

Como sabes

Como sabes

Ao relevo submisso do espelho admitiu sem negações outra de si. Sem expressão de noções ou julgamentos. Sem mágoas ou amarguras, isenta de culpa por talvez destroçar-lhes quaisquer ressentimentos. Alegrou a tristeza no segmento de um objetivo ou de um objeto para tudo o que suportava. Intrometeram-se luminescências que se fecharam abertamente nos florescimentos vindos de fora. E persistiam em diversos murmúrios.  Como os dias iguais a todos os dias que ainda submergiam numa loucura feliz. Um acesso exterior e nada para partilhar, apesar do convite – o temor é perdedor assíduo da indiferença – a pior forma de amor que há.

A malha da insônia seria o anzol fosforescente do corpo indefeso. Perto dali morava um cedro cinqüentenário, um canto de corruíra, uma cerejeira onde alguém, com muito zelo, reservara sementes para lhe dar.

Afagou-lhe as pálpebras, os anéis dos cabelos, a face, as formas de pérola. No seu abraço permitiu-lhe o abandono seguro de quem se sente amado.Incondicionalmente. O quarto sempre à sua espera, o quadro de tulipas pousando no coração azulado entre as paredes claras, o ensejo rosado a esperar-lhe o gosto singular, lençóis de algodão perfumados de maciez maternal. Uma ingênua liberdade toldava-lhe a tristeza adormecendo para reconfortar-se no amanhã, com um sorriso corajosamente inesquecível. Sobre uma luz difusa entre singelezas de fogo repetiu como uma canoa flutuante o langor que se perdera numa erva antiga, a cantiga que previa inteira e só por aquela noite a procurara como se soubesse não tê-la. “O inesquecível é o amor que sobra. Para algumas, e só para algumas coisas, que são para sempre.”

Aqueles olhos eram loucos e surdos. E eram também aqueles ouvidos com olhos.  Porque há ouvidos cegos e fragores inaudíveis com olhares: E olhos mudos e lábios olhando as profusões invisíveis ao tato. O paladar pênsil do gesto sem lábios.  Olhar sápido de olivas. E oliveiras repletas de retinas tocando o sol com brumas, com mãos de vinho... “que misteriosos olfatos escondeis além de vós? Precisarei de todos os sentidos ao mesmo tempo.” Ouviu um perfume qualquer que seu coração reconheceu, tocou-o de forma irreversível na escuridão, na proximidade ausente do momento que a prendia até que surgissem os delineamentos de consciência e subconsciência, o desconhecido perguntando se poderia resumir-se. Não com uma resposta qualquer. Tampouco com o retrocesso.

Sobrava-lhe o nada para expressar o mínimo, e não expor estranhamentos a caberem uns dentro dos outros – primaveras com floradas de gelo, verões sendo outonos mornos, invernos de calor a nevar no tropeço das nuvens. As oliveiras misturadas aos sândalos e madressilvas. Flores de laranjeira deslizando pelo tempo, entre as asas dos melros... um mero truque da imaginação, a memória talvez nem sua que se seguia por séculos.

E desse olfato surdo vê a completude indefinida em fractais. Nem tão abstratos assim, a imaginação do gosto lhe saliva a boca. “Não se lembrem de Pavlov. Houve uma vez em que me dei sais. Depois açúcares. Não há nada ou ...talvez alguma coisa aja fora de mim. Vejo novamente quando ouço e novamente toco quando olho. Outra vez me ouço quando degusto. E novamente me alimento quando tudo se mistura nesse inesgotável recurso de meia-estação.”

Multiplicou-se com rebeldia e graça por todas as frações da luz – no colo do ar e do tempo, como as areias juvenis... fecundando-se indefinidamente em oceanos pautados por um eco outro, do outro lado. O lado de dentro.

Texto do livro "Entre as Águas" publicado em
Debaixo do Bulcão poezine nº 40
Almada, PT, dezembro de 2011
http://debaixodobulcao.blogspot.com/2012/03/como-sabes.html