quarta-feira, 20 de junho de 2018

Ver se




Arte; Tere Tavares

Ver se
De si. Ramo e planta. Passou a manhã entre um pesadelo e um devaneio. Algo viera lhe embaraçar o dia. Outro de muitos em que já se vira. O que não queria que lhe acontecesse. Não dependia de seu pensar ou de seu agir. Sentia-se mínima. Aceitação: o único unguento que lhe sobrava. Esticava sua revolta sobre a perda. Sobre o zimbro, o desejo. Olhava o céu rasgado pelos edifícios. A fuligem a deixar tudo mais cinza. Irrespirável. Quase como a sua roupa de atriz. Imaginava. Como seria o depois? Cortou as unhas da noite. Evitou o sono. Por pouco, não se deixava seduzir pela morte. Que paz maior poderia haver do que uma noite em que dormisse todo o avivamento? Quanto lhe custava subsistir aos sucessivos favores! Como queria substituí-los! Quanto não suportava ver o que via! E, ainda assim, almejar a visão total. Entregando-se ao mundo quase como um Cristo. Um fio de ouro inconcluso lhe punha mais luz, e quanta no olhar: Melra. Os olhos acesos. Um desalinho. Os olhos abertos. Melra. Os olhos nos olhos. Melra. Os olhos nus. Melra. Os olhos sem final. Os olhos sem. Os olhos. Melra. Os olhos intermináveis. Melra. Os olhos originais. Melra. Os desvendados. Melra.  Os olhos sempiternos.


do livro "A licitude dos olhos" Contos - Editora Penalux 2016.