quinta-feira, 24 de outubro de 2019

"Campos errantes" de Tere Tavares - Prefácio

Prefácio por Carlos Emílio Corrêa Lima



Literatura em estado de ânimo

Exercícios cósmicos de um novo sol, fêmeo, de mar doce e longo, sinuoso, um novo sol de estio e estilo. Depois, prontas as águas da escrita-chuva, chovem por novos sulcos da terra, súbitos outrados sentidos, rioutros. E se ergue uma onda de mar de dentro da selva salva da escrita nesta inédita timbragem textual de fibras, ondulações de sentido, conexões novas entre coisas que jamais antes haviam se unido nem em Dante; nesta escritantena, encontra-se o que nunca fora pensado e sentido anteriormente e, desse modo, mostrado a nós, leitores desacostumados ainda a isso que ali surge pela primeira vez. Mas não é neosurrealismo embora pareça, também não é o método cut up do William Burroughs aqui tamborilado, não é herança da poesofia dramática de Clarice Lispector, esse tom desconhecemos, versos que saltam de uma prospecção frondosa de uma prosa assimétrica, ao absurdo que é bordado com fios e cabelos doidos de uma avestruz linguística que ciclomeu dos frutos de ouro longe, das bordas do invisível. Sabemos invisivelmente como é, ping e pong de tintas e tudo começa a pintar-se de uma outra forma, com desexatas desatadas novas configurações. O figurativo aqui instala-se abstrato, nada que se pareça com as formas habituais do escrever e do dizer a que estávamos acostumados. Os verbos soam sempre mais longe do que ser, haver e estar, os verbos escolhidos e colhidos entre estalos de cristal e rugidos de silêncio que os torneiam de novas peles, outras conduções ideativas. Tudo cresce 10 textualmente, proliferante, nesse enverdecer do dizer, nesse manual de estilos aleatórios autodiccionais. E de modo algum são também gongorismos desestudados, aqui estuados em pleno século XXI, rotores dados. A maioria dos textos aqui porejados são perfis, gênero literário que vai muito esquecido, abstradamente aqui praticados com esmero e interlúdios. Rilke e seus conselhos a um jovem poeta transita em treliças por aqui, essas intercaladas sinuosidades, esse método outro do dizer. Não há modo previamente existente de se avaliar essas frases riquíssimas, de imagens ambivalentes flutuáveis, que são mais do que frases estéticas, palavras a escorrer. Segue então essa nova forma de realizar imagens, forma mais incorpórea, porque não familiar, resina fresca. São poemas sem espaços entre os versos, parecem textos de propagação de uma estranha espécie de inteligência sobre-humana, mais do que artificial, onde as frases decolam de si mesmas para o que não sabem, foras das cores e formas conhecidas.

Não são contos, nem poemas, nem prosa poética, nem poemas em prosa, nem crônicas aladas de efusivas transparências velocíssimas, mas novos almejamentos, novas vontades da e 11 inacessíveis, inatingíveis cambiantes fluxos fraseônticos. Muitos, ou quase todos os trechos dos textos desse livro são de uma luzência hermética atordoante. “Campos errantes”. Este livro autodenomina-se assim, é o que melhor exemplifica seu movimento, cada capítulo-conto-perfil-mancha é um minucioso manifesto estético, com minúcias e fímbrias jamais vistas. Cada vez mais, à medida que vamos nos adentrando nele, ocorrem citações invisíveis, uma filosófica narrativa, pois o narrador é um coletivo de um ser indeterminado, que não se manifesta fisicamente, não sendo portanto, um narrador autoritário. Um narrante errante coletivo universal. Alguns dos textos em coro fractal desse livro de Tere Tavares me fizeram lembrar o primeiro livro de contos de Gilmar de Carvalho, seu isolado e desbravador Pluralia Tantum, publicado em meados dos anos 1970, pois também esse livro cearense-universal enfeixava experimentos em cada uma de suas entradas e picadas na mata da linguagem.

É como se voltássemos, em outro nível do tempo, em outra enseada e vertente da história literária às manchas e fantasias, às silhuetas, gêneros literários não mais nomenclicados hoje em dia, como se estivéssemos num interregno, numa mudança de rumos dos rios coletivos da linguagem. Estamos num pré-nascer de uma legião de sucedimentos de uma linguagem-pensamântica prosperante que ainda não sabemos, e nem podemos com os recursos teóricos atuais, delinear. Esses textos expõem-se soantes exuberantes em suas pré-formas, desdirecionando tudo a que estávamos ritmados. Trechos de flora teatral, filigranados, línguas botânicas, bafejam seus dramas de elixir em nervuras e grafemas entrincheirados. Personificações, prosopopeias, ilusionisimos, vertigens, clarividências, fibras cantantes, estrelas falantes, frases farfalham como galhos a beber nas suas 12 atiladas pontas, águaluz. Muitos dos pós-contos aqui parecem a tradução em palavras de um vitral art-noveau de ferro e vidro multicor, náutico-alado. Tudo no “lápis do improviso”, ou pictóricas teclas líquidas de tinta do escrito, segredos fonéticos do acaso estruturado são ditos em remos buscantes e folhas reposicionadas, repronunciadas. As citações, as frases das falas escritas entre aspas, onde cada frase é um manancial que se refigura e que se conjuga a outra frase-manancial numa tapeçaria líquida que nunca se evapora, fluente de dizeres escritos na fímbria do insistir adentro do espaço a que nunca antes se chegara, pois são dizeres nada cuneiformes, sempre glissantes e mutantes, num desarquivamento-relâmpago, são poemas numa nova forma do escrever... Flashes, perfis-flashes. Um misticismo arcaico e esotérico que se fantasia de novas particularidades. “Captura da ancoragem”. Frases quase incompreensíveis – e o que mais belo que isso? – em busca de psiquês. A narrativa nunca é veio, mas se incorpora em forma de cantaria caligráfica, desepicentro amarelo de todas as cores móveis, água vidente de vias e rumos, tendões de água direcionada, de jatos cruzados vindos de todos os sentidos, uma nova prosa simbolista à vista da leitura, jogos pictóricos da linguagem, uma reciclagem dos símbolos, uma linguagem com milhões de lados, uma poeira sonora de mitos porosos, desconexos, dos espaços regirados ao contrário do contrário. Máximas misturadas com narrativas, e narrativas em miniatura, novas citações, aromáticas, de aromas que fogem a qualquer som e significado. Mergulhando e entrando no sentido e saindo fora dele, de qualquer significação mesmo aquelas mais fora de tudo que até então havia sido dito ou entoado, axiomas ditirâmbicos fora dos âmbitos, um manual filosófico de mil sendas ambulantes, caminhos libertos de suas rotas e acrobáticas estradas que saltam no infinito. Gritos e 13 calmores em dúbios e ambíguas nervuras tipográficas, silábicas, sonoras, flutuantes estórias não-narrativas, quentes clamores do escrito. Os versos são escritos nas frases, sem problema, com relativismos em constante aceleração imagética, tecendo velozes combinações verbais inconcebivelmente transitórias em sua externa casca textual, nada ruidosa, silenciosamente discursiva. Poemas textuais. Transistórias. Não-estórias, transístores. Quase perfeita e esmerada, navega a embarcação de esmeralda altíssima da escrita, com seus enigmas florais intervaladados, do recém-inventado ultra-dizer, treliças trêmulas de orvalho e leitura interestelar, proliferação de signos inovados, compêndio de experimentações textuais, como jardins indecifráveis, oscilantes. No final do livro, depois dos grandes voos de tapeçarias flutuadas navegantes, há três contos e meio mais narrativos, agora mais como flutuações mais estruturadas sobre a grande trama da água da linguagem da autora, que são como réstias de um livro futuro de suas mil e uma mãos. Este aqui é, entretanto, um composto experi-mental de iluminações, seus eternos cadernos da linguagem recém-chegada do desconhecido.

Carlos Emílio Corrêa Lima – Fortaleza- CE

terça-feira, 23 de julho de 2019

Campos errantes concorre ao prêmio Oceanos

Uma alegria imensa constar entre os concorrentes ao prêmio Oceanos com meu livro de contos Campos errantes. Agradecimentos à editora Penalux, SP, e a todos que me acompanham nessa bela seara da Literatura.


Os livros participantes foram inscritos por 314 diferentes editoras. Neste ano, as publicações independentes, com edição do próprio autor, somam 49 livros e representam 3,3% do total das inscrições.
Concorrem ao prêmio autores de 11 diferentes origens. Dentre os países de língua portuguesa, temos, do continente africano, quatro angolanos (todos publicados em Portugal); dois cabo-verdianos (um publicado em Cabo Verde e um em Portugal); nove moçambicanos (sete publicados em Moçambique, dois em Portugal) e um autor de São Tomé e Príncipe (publicado em Portugal). De Portugal, foram inscritos 145 autores e, do Brasil, 1.300.
Há ainda livros publicados em cinco países cujo idioma oficial não é o português: Alemanha (com 2 livros); EUA (com 4); Irlanda (2); Ilhas Maurícias (2) e Holanda (1).
Dentre as categorias avaliadas pelo Oceanos, poesia – com 690 livros – corresponde a 47% das inscrições. Os romances somam 446 obras e representam 30,4% do total; os livros de contos – 225 inscrições – perfazem 15,4%, seguidos por 82 volumes de crônicas (5,6%) e 24 obras de dramaturgia (1,6%).
Cada jurado tem acesso, via sistema, aos livros que lhe cabem ler e avaliar – de modo que cada obra inscrita tenha três avaliações, por diferentes jurados. Os livros analisados tem uma marca-d’água Oceanos com o nome do jurado que deve ler e avaliar a referida obra. Os PDFs enviados nas inscrições tem acesso restrito aos jurados e aos curadores do prêmio.
Conheçam no link todas as obras de todas as categorias que estão concorrendo:
https://portal-assets.icnetworks.org/uploads/attachment/file/99980/Oceanos-2019-Inscri%C3%A7%C3%B5es-V%C3%A1lidas.pdf

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Do que o círculo ouve

Arte: Tere Tavares

Elbiah não deixa nunca de finalizar a frase antes que o sono chegue.  Na sincronia do mar sua alma navega como uma canoa subtraída que talvez pouse numa praia inóspita e resgate uma aurora a descer com sonhos e impaciências no compasso em que dançam as ondas. Como se esperasse acostumada à ausência Elbiah agarra-se no sargaço que escurece a orla suporta maresias e ventos como um carinho gestado impregnando a pele das pedras. No engodo de suspender-se deixa-se ficar com o fervor dos veleiros esquecidos chamados uma mulher de sorte ou desejos ou cavalos de ébano. Não me furtei de ser-te o sonho infuso nem de sonhar-te. Chegarei a tempo de roçar as chuvas e aclarar-me nos teus gestos.

Tere Tavares
Na ternura das horas- ensaios- 2017

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Campos errantes no Potiguar Notícias

Campos errantes no Potiguar Notícias, Rio Grande do Norte.

Quem acompanha com olhar atento o panorama das artes e dos que a praticam com profundidade de intenções e pureza de objetivos, há de notar que vem aumentando a freqüência com que artistas que trafegam em outras modalidades da arte vêm se dedicando também à literatura. Não estamos nos referindo àquela longa tradição que inicialmente destaca o debate entre as artes irmãs, ou aquela acolhida nos estudos de literatura comparada sob o viés da comparação de uma literatura com outra ou outras, ou a comparação da literatura com diferentes esferas da expressão humana. Sobre isto muito já se escreveu por sinal. O que salientamos é a ocorrência, e cada vez com maior freqüência, de um verdadeiro amálgama, uma mescla da expressão artística de autores em variadas manifestações.
 
Belo exemplo de artista de múltiplos talentos é Tere Tavares que para além da pintura, pratica literatura de alta qualidade (com incursões no gênero de poesias, contos e prosa poética). Após vários livros e outras tantas exposições de seus belíssimos quadros, brinda-nos agora com o volume de textos em prosa poética que abordam dentre tantos aspectos de nossa sensibilidade e de nosso viver contemporâneo, verdadeiras pérolas de conscientização existencial. Mas que ninguém se engane quanto ao fruir dessa obra de características bastante peculiares. Não há textos ‘fáceis’, mastigados e de imediata assimilação. Demandam do leitor a cumplicidade com uma escrita cifrada em Flashes, como afirma Carlos Emílio Corrêa de Lima no Prefácio da obra: “Flashes, perfis- flashes. Um misticismo arcaico e esotérico que se fantasia de novas particularidades. ‘Captura da ancoragem’. Frases quase incompreensíveis - e o que é mais belo que isso? – em busca de psiques. A narrativa nunca é veio, mas se incorpora em forma de cantaria caligráfica, desepicentro amarelo de todas as cores móveis, água vidente de vias e rumos, tendões de água direcionada, de jatos cruzados vindos de todos os sentidos, uma nova prosa simbolista à vista da leitura, jogos pictóricos da linguagem, uma reciclagem de símbolos, uma linguagem com milhões de lados, uma poeira sonora de mitos porosos, desconexos, dos espaços regirados ao contrário do contrário”. Parece muito complexo? Não é. Passemos ao depoimento que nos dá Ornella Dina Mariani de Lecca na Itália em texto de Posfácio, síntese bastante pertinente sobre esta obra de Tere Tavares: uma “alma que está intrinsecamente imbuída de poesia, embebida a ponto de transbordar. Sua escrita é, portanto, não só prosa poética, mas poesia pura que se detém em descrições detalhadas de estados de espírito como de profundezas marinhas, concavidades e encostas e margens onde a sua heroína procura conosco a explicação de si, do seu existir em tanta luz”.
 
Destacamos nos trechos de Carlos Emílio Corrêa de Lima e Ornella Dina Mariani, algumas palavras: “flashes”, “estados de espírito” e “em busca de psiques”. Aí temos o que refletir, e muito. Nossa psicologia já admite que o nosso estado de consciência é fenômeno em continua elaboração construtiva ou destrutiva. Vivemos um período no qual o ser, entendido como unidade prioritariamente orgânica, cede lugar a complexas unidades psíquicas - com a mesma febre de criações (paixões), com a mesma monstruosidade de formas espirituais (erros, violências, mentiras), e com a mesma incerteza e instabilidade. Sim, por certo, é o que a olhos nus podemos observar. Período de monstruosas construções, repetimos. Mas por outro lado, parece emergir um lento trabalho subterrâneo de amadurecimento e de assimilação que se opera no mundo psíquico-social, dando lugar a que o equilíbrio estável e fechado do passado se precipite na revolução do modo de pensar. Não é a arte a suprema expressão da alma humana? E por qual razão o fenômeno artístico não possuiria também os seus ciclos, que outra coisa não são senão os ciclos do fenômeno psíquico?
 
Eis que, para espanto dos que não conseguem visualizar um boi se não o apalparem muito bem apalpado, surge inopinadamente – porque impositiva -, a febre da evolução e a insaciabilidade de nossa alma que são forças irresistíveis e universais, a nos impelir para mais alto. Como que uma lei invisível, que requer contínua dilatação do nosso psiquismo. Positivamente encontramo-nos em um momento em que não é mais possível fugir ao dilema: ou compreender ou se exterminar. Não estamos falando de problemas abstratos, religiosos, ideológicos ou teóricos. Mas de uma problemática social e individual concreta. Problema de vida e morte, porque nossa ignorância constitui nossa impotência, e não atinamos ainda em desenvolver uma vontade cada vez mais viril, uma inteligência sempre mais aguçada, e um coração cada vez mais sensível e aberto. Uma equação muito simples se impõe para a nossa macacada: aceitar uma vida bestial ou lutar pela civilização da humanidade. Essa a vitória ‘biológica’ que a evolução impõe nesse momento histórico. E peço desculpas aos leitores por esse desabafo virulento. Foram pensamentos como esses que se desencadearam em meu ser após ler os textos de “Campos errantes”. Querem ver? Apenas um: “Magno”.
 
"A gélida laje me traz algumas anotações desconexas, leões dormindo em árvores, caçadores à espreita, convites aceitáveis, uma frase de Simone de Beauvoir, uma inconsistência que atrapalha as formulações exitosas e a seguir desaparece. Ando ao contrário para estar no lugar certo. A perspectiva é persuasiva. Sou transitório, musical como as cachoeiras. Somente quem transmite confiança torna-se confiável. Magno luta por qualquer migalha de entusiasmo que possa captar; em si, estão presentes as leituras graduadas, as interpretações retorcidas como escadas em caracol, o brevíssimo culminar das tragédias, o argumento, o brio, as armadilhas perpétuas e póstumas de alguém que, insaciavelmente, investiga-se ou é investigado.
 
Magno transita pelas abreviaturas liquefeitas em sua derme de ostra – um traje cravado e quase inorgânico. Distingue-se pelo que pensa e desguarda-se do desastre, como o que lê num papel amassado: ‘A formosura, embora todo o seu fascínio, pesa como uma paixão consoante ao desconforto. Todas as mulheres são lindas e lidas – são a deriva e a derivação, o refúgio e o desespero, os encantos que eternizam: meros detalhes de composição, de um confrontável pensamento a circular em acordes de fôlego e talento. Precisamos de novas e inovadoras referências. Estar no padrão ditado pelos falsos autores da beleza – não é tão simples carregá-la – que nos querem atrair em seus próprios claustros: meandros subjacentes que não reconhecemos porque profundamente cruéis e ilegítimos’. 
 
Num fragmento chamado casa, Magno recebe um broto esculpido pela Lua que embala a noite lúdica. As pedras, as plantas e tudo o que vive sussurram simbologias para lhe indicarem a fecundidade que se espalha como as penas quando retiradas dos travesseiros. ‘Sou ilha irredutível e tudo me é afiançável quando colho com os sentimentos os valores naturais, os enovelamentos do farfalhar planetário. À demanda do dia e às manhãs noturnas. Emociona-me essa evidência costurada em ciclo inicial, fatídico, como se todas as coisas falassem dos distúrbios por percorrer. O sentido dessa expectativa de vida após a vida não é algo que se possa traduzir racionalmente. Sob o fulcro da razão, as únicas e impalpáveis deduções – colocando nisso as fraquezas, dogmas, polêmicas e complexidades – são as que nos permitem alcançar expansões que fogem do absoluto e do definitivo; a incansável busca é o fecho, o resquício último de alguma réplica plausível. Quando nada me socorre, me lembro de Deus. Há de me guiar o Sol ao crepitar das borboletas. E me instruir sobre como captar a estridência dos grilos’”.
 
Voltemos finalmente ao Posfácio de Ornella Dina Mariani. Forçoso concordar com ela quanto ao trabalho que a autora realizou e que “nos fala de uma humanidade melhorada por este contato íntimo com a natureza, seus segredos e suas maravilhosas protuberâncias, que chamamos árvores, mares, folhas, flores, pores de sol e, como última flor, a nossa alma. Os “Campos errantes” da senhora Tere Tavares nos levam a pensar no Absoluto, aquela verdade escrita em nosso mais potente instinto, na nossa aspiração maior que é a de subir sem limites, subir eternamente.
 
SERVIÇO
Livro: “Campos errantes”, contos de Tere Tavares. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2018, 196p.
ISBN 978-85-5833-435-8

http://www.potiguarnoticias.com.br/noticias/40242/campos-errantes-a-busca-pelo-absoluto-no-livro-de-contos-de-tere-tavares


Meus agradecimentos aos editores.


domingo, 6 de janeiro de 2019

“Campos errantes”. A busca pelo Absoluto

“Campos errantes”. A busca pelo Absoluto
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Quem acompanha com olhar atento o panorama das artes e dos que a praticam com profundidade de intenções e pureza de objetivos, há de notar que vem aumentando a freqüência com que artistas que trafegam em outras modalidades da arte vêm se dedicando também à literatura. Não estamos nos referindo àquela longa tradição que inicialmente destaca o debate entre as artes irmãs, ou aquela acolhida nos estudos de literatura comparada sob o viés da comparação de uma literatura com outra ou outras, ou a comparação da literatura com diferentes esferas da expressão humana. Sobre isto muito já se escreveu por sinal. O que salientamos é a ocorrência, e cada vez com maior freqüência, de um verdadeiro amálgama, uma mescla da expressão artística de autores em variadas manifestações.
Belo exemplo de artista de múltiplos talentos é a senhora Tere Tavares que para além da pintura, pratica literatura de alta qualidade (com incursões no gênero de poesias, contos e prosa poética). Após vários livros e outras tantas exposições de seus belíssimos quadros, brinda-nos agora com o volume de textos em prosa poética que abordam dentre tantos aspectos de nossa sensibilidade e de nosso viver contemporâneo, verdadeiras pérolas de conscientização existencial. Mas que ninguém se engane quanto ao fruir dessa obra de características bastante peculiares. Não há textos ‘fáceis’, mastigados e de imediata assimilação. Demandam do leitor a cumplicidade com uma escrita cifrada em Flashes, como afirma Carlos Emílio Corrêa de Lima no Prefácio da obra: “Flashes, perfis- flashes. Um misticismo arcaico e esotérico que se fantasia de novas particularidades. ‘Captura da ancoragem’. Frases quase incompreensíveis - e o que é mais belo que isso? – em busca de psiques. A narrativa nunca é veio, mas se incorpora em forma de cantaria caligráfica, desepicentro amarelo de todas as cores móveis, água vidente de vias e rumos, tendões de água direcionada, de jatos cruzados vindos de todos os sentidos, uma nova prosa simbolista à vista da leitura, jogos pictóricos da linguagem, uma reciclagem de símbolos, uma linguagem com milhões de lados, uma poeira sonora de mitos porosos, desconexos, dos espaços regirados ao contrário do contrário”. Parece muito complexo? Não é. Passemos ao depoimento que nos dá Ornella Dina Mariani de Lecca na Itália em texto de Posfácio, síntese bastante pertinente sobre esta obra de Tere Tavares: uma “alma que está intrinsecamente imbuída de poesia, embebida a ponto de transbordar. Sua escrita é, portanto, não só prosa poética, mas poesia pura que se detém em descrições detalhadas de estados de espírito como de profundezas marinhas, concavidades e encostas e margens onde a sua heroína procura conosco a explicação de si, do seu existir em tanta luz”.
Destacamos nos trechos de Carlos Emílio Corrêa de Lima e Ornella Dina Mariani, algumas palavras: “flashes”, “estados de espírito” e “em busca de psiques”. Aí temos o que refletir, e muito. Nossa psicologia já admite que o nosso estado de consciência é fenômeno em continua elaboração construtiva ou destrutiva. Vivemos um período no qual o ser, entendido como unidade prioritariamente orgânica, cede lugar a complexas unidades psíquicas - com a mesma febre de criações (paixões), com a mesma monstruosidade de formas espirituais (erros, violências, mentiras), e com a mesma incerteza e instabilidade. Sim, por certo, é o que a olhos nus podemos observar. Período de monstruosas construções, repetimos. Mas por outro lado, parece emergir um lento trabalho subterrâneo de amadurecimento e de assimilação que se opera no mundo psíquico-social, dando lugar a que o equilíbrio estável e fechado do passado se precipite na revolução do modo de pensar. Não é a arte a suprema expressão da alma humana? E por qual razão o fenômeno artístico não possuiria também os seus ciclos, que outra coisa não são senão os ciclos do fenômeno psíquico?
Eis que, para espanto dos que não conseguem visualizar um boi se não o apalparem muito bem apalpado, surge inopinadamente – porque impositiva -, a febre da evolução e a insaciabilidade de nossa alma que são forças irresistíveis e universais, a nos impelir para mais alto. Como que uma lei invisível, que requer contínua dilatação do nosso psiquismo. Positivamente encontramo-nos em um momento em que não é mais possível fugir ao dilema: ou compreender ou se exterminar. Não estamos falando de problemas abstratos, religiosos, ideológicos ou teóricos. Mas de uma problemática social e individual concreta. Problema de vida e morte, porque nossa ignorância constitui nossa impotência, e não atinamos ainda em desenvolver uma vontade cada vez mais viril, uma inteligência sempre mais aguçada, e um coração cada vez mais sensível e aberto. Uma equação muito simples se impõe para a nossa macacada: aceitar uma vida bestial ou lutar pela civilização da humanidade. Essa a vitória ‘biológica’ que a evolução impõe nesse momento histórico. E peço desculpas aos leitores por esse desabafo virulento. Foram pensamentos como esses que se desencadearam em meu ser após ler os textos de “Campos errantes”. Querem ver? Apenas um: “Magno”.
"A gélida laje me traz algumas anotações desconexas, leões dormindo em árvores, caçadores à espreita, convites aceitáveis, uma frase de Simone de Beauvoir, uma inconsistência que atrapalha as formulações exitosas e a seguir desaparece. Ando ao contrário para estar no lugar certo. A perspectiva é persuasiva. Sou transitório, musical como as cachoeiras. Somente quem transmite confiança torna-se confiável. Magno luta por qualquer migalha de entusiasmo que possa captar; em si, estão presentes as leituras graduadas, as interpretações retorcidas como escadas em caracol, o brevíssimo culminar das tragédias, o argumento, o brio, as armadilhas perpétuas e póstumas de alguém que, insaciavelmente, investiga-se ou é investigado.
Magno transita pelas abreviaturas liquefeitas em sua derme de ostra – um traje cravado e quase inorgânico. Distingue-se pelo que pensa e desguarda-se do desastre, como o que lê num papel amassado: ‘A formosura, embora todo o seu fascínio, pesa como uma paixão consoante ao desconforto. Todas as mulheres são lindas e lidas – são a deriva e a derivação, o refúgio e o desespero, os encantos que eternizam: meros detalhes de composição, de um confrontável pensamento a circular em acordes de fôlego e talento. Precisamos de novas e inovadoras referências. Estar no padrão ditado pelos falsos autores da beleza – não é tão simples carregá-la – que nos querem atrair em seus próprios claustros: meandros subjacentes que não reconhecemos porque profundamente cruéis e ilegítimos’.
Num fragmento chamado casa, Magno recebe um broto esculpido pela Lua que embala a noite lúdica. As pedras, as plantas e tudo o que vive sussurram simbologias para lhe indicarem a fecundidade que se espalha como as penas quando retiradas dos travesseiros. ‘Sou ilha irredutível e tudo me é afiançável quando colho com os sentimentos os valores naturais, os enovelamentos do farfalhar planetário. À demanda do dia e às manhãs noturnas. Emociona-me essa evidência costurada em ciclo inicial, fatídico, como se todas as coisas falassem dos distúrbios por percorrer. O sentido dessa expectativa de vida após a vida não é algo que se possa traduzir racionalmente. Sob o fulcro da razão, as únicas e impalpáveis deduções – colocando nisso as fraquezas, dogmas, polêmicas e complexidades – são as que nos permitem alcançar expansões que fogem do absoluto e do definitivo; a incansável busca é o fecho, o resquício último de alguma réplica plausível. Quando nada me socorre, me lembro de Deus. Há de me guiar o Sol ao crepitar das borboletas. E me instruir sobre como captar a estridência dos grilos’”.
Voltemos finalmente ao Posfácio da senhora Ornella Dina Mariani. Forçoso concordar com ela quanto ao trabalho que a autora realizou e que “nos fala de uma humanidade melhorada por este contato íntimo com a natureza, seus segredos e suas maravilhosas protuberâncias, que chamamos árvores, mares, folhas, flores, pores de sol e, como última flor, a nossa alma. Os “Campos errantes” da senhora Tere Tavares nos levam a pensar no Absoluto, aquela verdade escrita em nosso mais potente instinto, na nossa aspiração maior que é a de subir sem limites, subir eternamente.
Livro: “Campos errantes”, contos de Tere Tavares. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2018, 196p.
ISBN 978-85-5833-435-8