sábado, 28 de maio de 2011

Alquimia

a angustia de não me ter
desliza aos meus pés

vazio & fastio
espiam
no revés

rasa
bambu na tempestade
beijo o chão umedecido

arrancando do próprio sangue um motivo
cresce uma flor de milagre

surpreendo-me
cada lágrima é agora
uma alquímica rosa
exposta em minha sala

Tela -Vermelho Rosa- 2006
Tere Tavares  

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Aura




Não se importou com seu sofrimento. Estava ali por estar.
Os aplausos o agradavam como quando ouvia Beethoven. Não tinha papas na língua. Assumia todos os personagens de todos os livros que lia e dos que viria a ler, todos que encontrava dentro e fora do habitual.

Gostava de ser longínquo, conhecia quase a totalidade das sensações humanas, inclusive as “demasiado humanas”. Nitzsche o compreenderia bem. Parecia viver com a desenvoltura das águias e a sutileza dos ventos, cheirando a luzes escritas sobre ondas e areias – mantinha a suficiente distância que lhe conferiam a timidez e a vastidão dos verbos inquietos –  tão movediço quanto.

Atravessava o tempo com uma urgência tranqüila e constante. A geografia: segundo encanto, onde se demorava mais. Como se olhasse um raro espécime do universo, reconstruía para os outros a alquimia da compaixão. Era parte de seu cotidiano ser carinhoso, perguntar como vai, como não, desejar felicidades, muitas.

Claro estava que não importava na mesma proporção que se importava. Os amigos permaneciam desgraçadamente ausentes, propositalmente mudos. Prometeu que se interessaria mais pelos ensinamentos de Lao Tsé. Mesmo sabendo do seu estado revelava com toda a intensidade o comportamento jovial e sistemático: “Seja o que for possível até conhecer as possibilidades do impossível”.

Cicatrizava as feridas – as que sabem espreitar na inteireza dos vãos – com a liberdade autêntica de retornar a novos ângulos e umedecer o seu sol: “Terás vontade de rir comigo, e teus amigos ficarão espantados de ver-te rir olhando o céu”, solfejava-lhe uma criatura aparentemente angelical vinda das páginas de Saint-Exupéry, encorajando-o a prosseguir com avassaladora alegria.

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