quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Publicação do livro LUZ



                                                                 Capa: Tere Tavares

Publicar um livro é sempre um desafio, por mais que tenhamos publicado outros livros anteriormente. Cada livro cria a sua correnteza estética e ética, os seus caminhos e estranhamentos. Há acertos e há falhas, mas nunca falta a ardente razão criativa que nos faz escrever. Tudo é novo e tudo é diferente. Estamos celebrando a nossa ousadia e trazendo ao mundo o livro LUZ. Que se torne leitura. 

Tere Tavares



Prefácio de Amanada Kristensen

PREFÁCIO LUZ

 

Esta página é redutora e por isso contrasta com toda a prosa vaga-lume que espera os olhos de um leitor atento e sensível à sua luz.

 

Como leitora privilegiada da obra Luz (2024), de Tere Tavares, sou capaz de afirmar que o ato de me embrenhar em suas escre(vi)vências, ainda no prelo, permitiu-me, ao longo de diversas atualizações quanto aos sentidos dados e (de)formados pela autora, (re)edificar um alargamento subjetivo de meus horizontes de expectativas.

Isso implica afirmar que a recepção da obra de Tavares levou-me, pela constante desconstrução do familiar – proposta, especialmente por meio do potencial semântico de suas combinações lexicais posteriormente recuperadas – a um enriquecimento não só metalinguístico quanto ao que considero, por exemplo, o fazer literário, mas especialmente, ao aprofundamento de uma percepção dialética acerca da corporificação sensível-estética de conceitos abstratos  relativos à natureza humana, como a inadequação x harmonia; superficialidade x profundidade etc., dando a tais duplos abstratos carne e osso por meio do complexo existir de personagens densos.

Como prefacerista, e já na esfera do que conhecemos como crítica literária, tenho de admitir que elaborar meios didáticos para descrever o efeito estético da prosa poética de Tavares, fez-se matéria sisífica: quando pensava chegar ao topo das tentativas de parafrasear a experiência da substância literária propositada pela autora em seus dizeres, percebia-me apenas limitada à superfície estrutural de sua obra ou, até mesmo, à estagnação do susto ante um fazer literário-artístico absolutamente original; teriam assim penado Wolfgang Iser e Benjamin Moser para, respectivamente, adentrar a literatura de Dickens e Clarice Lispector?

 Embora ciente de minhas deficiências perante o inefável prazer estético a que fui submetida, considerarei meios passíveis de descrição proposicional quanto à recepção da obra da autora que articula conto, crônica e aforismo[1] para abordar especialmente a metalinguagem e a dissecação de consciências que, nitidamente, conflitam entre id, ego e superego, expressando a partir de seus comportamentos discussões filosóficas, sociais e afetivas acerca das emoções humanas. Para ilustrar faces desse contexto artístico de produção, recorrerei, especialmente à crônica metalinguística e filosófica Desescrever e ao conto O pássaro, marcados respectivamente por monólogos e fluxos de consciência complexos e representações alegóricas das sensações e comportamentos humanos.

Em Desescrever, a temática da metalinguagem, ou seja, dlinguagem literária que se debruça sobre si mesma, propõe a palavra literária enquanto palavra desnuda que preenche artisticamente o ser-poroso: o homem moderno que, embora cheio – de si e de saberes – existe amplamente fragmentado. Aproximo a proposta metalinguística de Tere Tavares do dizer literário enquanto dizer nu, pois como insinua o próprio título, Luz lança um Fiat lux aos olhos gastos de leitores habituados à (des)informação em excesso advinda por intermédio de uma palavra gasta cuja couraça ideológica – repleta de pré-conceitos – é preciso despir.

 O poeta amazônida Thiago de Mello anteciparia esta percepção da linguagem em Silêncio e Palavra, direcionando-nos que A couraça das palavras/ protege o nosso silêncio/ e esconde aquilo que somos. Tere Tavares, por sua vez, vem nos mostrar que a linguagem literária deve estar além da couraça: é preciso (res)semantizar as conceptualizações do homem, ou seja, seu processo de compreensão de si e o mundo, desmistificando-as. Nas palavras da autora quanto à linguagem literária: O dizer é intocável por conter a impassividade do verbete ágrafo, por refutar as obviedades. Nunca toques as palavras miseráveis, deixa-as morrer em pré-palavras entre as intolerâncias das coisas gastas”.

Diversas combinações lexicais propostas por Tavares como verbete ágrafo geram um efeito de estranhamento no leitor pensado, o que Umberto Eco chama de Leitor-Modelo. Este, num grau complexo de informações enciclopédicas que não devemos aqui desconsiderar, é direcionado a um caminho de apreensão dos sentidos pelo desmembramento de contínuas construções semanticamente paradoxais e inicialmente irreconciliáveis; afinal, um verbete propõe conceituar verbalmente, ou seja, pela grafia, pela escrita, um conceito. Ao propor que a linguagem literária é impassiva e comporta-se tal qual um verbete ágrafo, Tere Tavares confirma um dos diversos aspectos cognitivos gerados pela literatura moderna, que é a movimentação e deformação semântica: a expansão da fronteira entre a experiência humana e a articulação linguística, reforçando aspectos icônicos da linguagem, fazendo-a próxima das sinestesias. Para o teórico da literatura Gellhaus (2012, p. 7) “[...] a literatura trabalha no limite do não-proposicional e cria novas formas de articulação [construindo] modelos para a percepção de realidade e para a reconstrução de experiência”. Considera-se que o âmbito do não proposicional abarca “[...] impressões sensoriais imediatas e pré-linguísticas, como experiências de sons, cores, odores e impressões táteis, mas também experiências altamente complexas, marcadas emocionalmente, como traumas e recordações” (Gellhaus, 2012, p.7).  A temática metalinguística de Tavares antecipa, pois, o próprio percurso existencial de suas personagens que, geralmente, em sua nítida ingenuidade, antes sentem a mágica epifânica das coisas, que podem descrevê-las. Agem como se percebessem, por exemplo, um arco-íris como o olho nu do mundo e embora quase não o possam descrever como um fenômeno óptico e meteorológico, são capazes de experenciar sua beleza; assim, as personagens de Tavares direcionam o leitor antes à sensação dada pela linguagem literária que à proposição lexicográfica desta.

No conto O pássaro, por exemplo, o leitor é apresentado a uma ave que já no nascimento passa por diversas dificuldades para ser-no-mundo e que, posteriormente à maturidade, perde sua característica genuína: a capacidade de voar. Aproveitando-se do símbolo do pássaro para propor uma alegoria do comportamento do Homem, Tavares aborda desde o abandono afetivo nos primórdios da vida até a sensação de uma existência absolutamente podada em sua própria natureza, uma vez que o pássaro perde a capacidade de voar e lhe resta uma “cicatriz circunscrita no dorso, o desequilíbrio do corpo e a humilhante condição psíquica”. Embora inundado pela incompletude, o pássaro prossegue, fincando sua pulsão de vida no ensinamento dos filhos rumo ao ápice de suas existências: “[...] o inevitável e definitivo voo que é o sonho e o prazer inerente de todas as aves sãs”, até que possa, finalmente, “descansar da vida”: “ele se pôs sob uma árvore ressequida, cerrou os olhos, cabeça pendida sobre o peito, imaginando o que fora anterior à tragédia de não mais ser, até que o céu o recolhesse”.

 O leitor é levado a rememorar suas incompletudes e, em seu imaginário, enquanto persegue o caminhar existencial do pássaro, acaba por associar sua condição à sua própria catarse – a um efeito transformador – que o direciona ao exercício reflexivo-hipotético acerca do que vem a se configurar uma natureza humana que não pode exercer seu fim humano: um homem que não encontrou o amor? Uma mulher infértil cujo sonho era ser mãe? Uma filha que, amando a mãe, jamais pôde receber esse amor de forma recíproca?  O sofrimento patológico de um acumulador de riquezas incapaz de perceber a fome do outro? Muitas seriam as possibilidades proposicionais, mas nenhuma delas é mais semanticamente profícua, no sentido de ressemantizar o que conhecemos por inadequação, que a recepção da sensação dolorosa de (re)conhecer sensivelmente, num pássaro sem asas, sua total perda identitária. Ainda quanto a esse conto, em seu desfecho, a narradora propõe uma reflexão filosófica acerca da incompletude dos sujeitos, que parece (re)problematizar a própria natureza do ser humano – ser necessariamente incompleto que continua sendo, mesmo sem quase poder sê-lo: “Ser-te eu quando nem mais. Remar mesmo sem asas, porque se foram. Remar, em ti, as fraturas do sem mar”.

Comportando-se tal qual a personagem do conto Saga, Tavares é uma “[...] grande mulher que mesmo na estiagem chove”. Resta, então, ao leitor moderno acomodado às prosas gastas fazer-se capaz de, como uma criança que engatinha o mundo, esquecer-se um pouco do conforto adulto da água morna do chuveiro elétrico ou da couraça das palavras e aventurar-se a uma chuva de Luz jamais passível de repetição, mesmo num calendário de 365 oportunidades, ou num repertório tão numeroso tal qual o é a Literatura Brasileira Contemporânea.

Amanda Kristensen

 

Escritora das obras Pelas Frestas, Entre-Terras e Os segredos de Vó Trudes.

Doutora em Letras, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Mas principalmente amiga, admiradora e leitora de Tere Tavares.

 

 

 



[1] O aforismo é um gênero na fronteira entre o literário e filosófico. Propõe definições breves pautadas pela subjetividade. A forma aforística em Tere Tavares perpassa por um dizer poético e é definida pela autora como “fragmentos de luz”. Dentre os diversos ‘fragmentos’ propostos pela escritora ilustra-se sua definição quanto ao valor da arte estar menos na questão autoral e mais na matéria artística: “O valor da Arte está no que, a ela, se dispensou de trabalho até autografá-la”.

 


                       Posfácio de Giovanni Francomacaro, Itália

Posfácio LUZ

"Madame Bovary sono io" dichiara Flaubert, volendo così affermare che in ogni personaggio l'autore mette un po' di sé stesso; pertanto ogni racconto potrebbe essere inteso come una biografia in cui l'autore gioca a nascondino con sé stesso.

Tere Tavares non mente, non si nasconde, possiede una scrittura che non posso definire in altro modo che limpida; nelle sue storie non appare il percorso di un personaggio e nemmeno la cronaca di una vita, ma la storia di una trasformazione; c'è una ricerca del sé più intimo e questa ricerca avviene proprio come i suoi disegni: con tratti privi d'incertezza che fluttuano decisi e sicuri come il volo di un colibrì.

Il senso delle storie di Tere è ricercare la propria unicità che si può manifestare solo nel proprio io; ma non l'io egoistico, che sconfina nell'ego, ma l'Io importante, perché portante di una intera esistenza che non può terminare con la parola fine ma si rinnova ogni volta con la parola "conoscere", una parola che nasconde fra le pieghe delle lettere una parola ancora più misteriosa: nascere, e rinascere.

Tere Tavares è inquieta come la sua terra, rivolta emozioni come fossero sassi conficcati nel cuore, non si nasconde ma combatte contro la crudezza del mondo e della vita, e si pone di fronte al male con la sua arte, che innalza come uno stendardo, oppure un'arma che invece di uccidere genera vita.

Giovanni Francomacaro, Itália.

 

Posfácio  LUZ – Tradução por Tere Tavares

"Madame Bovary sou eu" declara Flaubert, querendo, assim, afirmar que, em cada personagem, o autor põe um pouco de si; portanto, cada história pode ser entendida como uma biografia em que o autor brinca de esconde-esconde consigo mesmo.

Tere Tavares não mente, não esconde, tem uma escrita que não consigo definir senão clara; em suas histórias não aparece a trajetória de um personagem ou mesmo a crônica de uma vida, mas a história de uma transformação; há uma busca pelo eu mais íntimo e essa busca se dá exatamente como em seus desenhos: com pinceladas livres de incertezas que flutuam decidida e confiantemente como o voo de um colibri.

O significado das histórias de Tere é buscar a própria singularidade que só pode se manifestar no próprio eu; mas não o eu egoístico que faz limite com o ego, mas o eu importante porque é o portador de toda uma existência que não pode terminar com a palavra fim, mas se renova, a cada vez, com a palavra "conhecer", palavra que esconde, entre as dobras das letras, uma palavra ainda mais misteriosa: nascer e renascer.

Tere Traves é inquieta como a sua terra, revira as emoções como se fossem pedras confinadas no seu coração, não se esconde, mas luta contra a crueza do mundo e da vida, e enfrenta o mal com a sua arte, que ergue como um estandarte, ou uma arma que, ao invés de matar, gera vida.

Giovanni Francomacaro, Itália.

 




 


                                                     Capa: Fotografia da Autora, Tere Tavares

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