Talvez tivesse lido no dilúvio da criação das coisas que a chuva estava em tudo. Quando pensou iniciar qualquer movimento debateu-se inexplicavelmente assustado em frente às mãos das grades. Seguras e mornas retiravam o suor de seus braços. O trem que o levaria partira um mês antes. Assim como a nova chance de mudar ou desaparecer.
Viu os mesmos trajes brancos de tantas e passadas investidas como numa apoteose de receitas impossíveis. Tolas. Perdidamente ineficazes. Prostrou-se, punitivo e irreajustável. Todas as fórmulas de superação lhe pareciam inúteis. Falsamente felizes.
Sobrava-lhe ainda um bom lugar para morar. Sem envergonhar-se, sorveria da liberdade o mesmo que a liberdade não lhe permitia abolir. E carregar consigo a sede indesculpável, toda ela, exatamente como um homem que acaba de embocar o que de melhor lhe fornece a complacência disfarçada em bondade.
Tinham lhe proposto continuar naquele ofício. Com um pouco mais de tempo, aos domingos, demorando-se mais e mais sobre o enredo insidioso e mal remunerado do envelope, do mesmo e distante departamento, farto, exausto como a sua resolução de perdurar.
Não tinha vocação para repetir e repetir. Rugiu deliciosamente quando lhe entregaram o diploma. A quase definitiva inércia. A única louça disposta nos seus quinze minutos diários de intervalo para repor as energias. Durante mais de quinze anos permitiu-lhes os talheres. E a gastrite. E o ácido lático do excesso que resultou nas fragilidades orgânicas.
Os médicos não souberam curá-lo. Nem os livros de auto-ajuda. O dia a dia perdera muito da respeitabilidade – fatos em que se obliteram humílimas tarefas, como cortar as unhas, vestir a camisa, fazer a barba. Somente depois de muito tempo obteve a diligência da lógica abusiva que colaborou na geração de todo aquele absurdo (quanto vale aprender a dizer não?) – as fatídicas mínimas coisas ataviadas de infortúnio.
A perda da independência é psicologicamente trágica. Talvez mais claudicante que a própria dor. O mais um não era ele – o número preferido do Capital. O degenerado. Nem seria. Não agora que se descobrira novamente dono de si. Abriu mão da indenização por perdas e danos, da reparação moral embora lhe fossem devidas e justas.
Por conta própria retomou a ciência das ervas – camomila, tanchagem, espinheira-santa, cavalinha, melissa, erva-tostão, e erva-cidreira. Intensificou o que já obtivera da hidroterapia. O banho de ar para o segundo pulmão humano – a pele, como ensina o Dr. Yum – uma fortaleza para o sistema nervoso autônomo. Tudo a ver consigo – uma epopeia de auto cura.
Amadurecer gera o custo dos perigos e o lucro dos iluminados. Adaptou-se. Firmando-se a cada dia na consciência sincrônica dos elementos mais sutis. Suave como o universo que o seduzira desde sempre. Como se saísse de um eclipse.
A flexibilidade do tempo para a estruturação do indivíduo segundo os próprios padrões evidenciam benefícios incalculáveis à saúde – concluem as pesquisas científicas da “Revisão Sistemática Cochrane”.
Não sem a duradoura convalescença obteve o bastante para viver mais harmoniosamente. Estabilizou a própria dignidade com genuína disposição.
Aventurou-se num segmento menos cruel e igualmente ostensivo, uma aposta mais revogável – outra missão constantemente renovada que se converteria no prazer, no engrandecimento da alma. Só que agora depondo uma arma de clarividência infalível: distinguiria, sem delegar ao menosprezo os aprendizados colhidos ou por colher em cada momento, como neutralizar implacavelmente o que o desrespeitasse.
A partir do original publicado no Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4963
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