quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pedra do Dia



Na sala pequena e quase escura, deparou-se com a coleção de preciosidades dispostas em bandejas forradas de algodão branco: ali repousavam ágatas, opalas,todas as variedades do quartzo, flor de ametista,
turmalinas, murion, água-marinha, jade, jaspe... Quero essa, disse ao guardador de pedras... Será sua, aquiesceu sob as lentes de quem há anos reportara a arte para além da própria experiência. Tenho que me concentrar para assentá-la na base, e é preciso muita calma e meticulosidade. Eu espero, sem problemas.

Naquela tarde chuvosa e aparentemente sem surpresas,os olhos brilharam como as gotas dos losangos
pequenos e sutis, até que chegasse a noite. As nuvens não interromperam o choro. A rua bem o dizia com seus pequenos riachos de enxurrada. Adiou-se por detrás das chaves, dos betumes que coloriam as aberturas de ferro, pensou em sair e ver o sol suando o meio dia que houvera passado longe da tranca sólida, bem mais impassível que as mãos, que mal conseguiam irromper um delta pela portinhola da sala. Entre os vincos de vidro e uma prisão invisível, ganhou a pedra lapidada e flexível pela qual talvez tivesse esperado toda uma vida.

O dia seguinte, quando a manhã igualmente se derramou para recolher-lhe o sorriso em meio à brandura do corpo, abarcou ócios palpáveis como se tudo se afastasse num torneio de resistências – levantando pesos como brincadeiras enquanto o anel de ametista descansava entre os dedos feito um olho feliz.

(do livro Entre as Águas)
foto da autora

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Quando andar é meditar


A partitura  se expandia pela claridade dos caminhos. Algo de um comportamento sério, introspectivo, contrastava com os lilases e amarelos. Viam-se duas pessoas difusamente compenetradas caminhando, mais por obrigação do que por prazer. Pareciam tristes. Melancólicas. Talvez por perceberem que o tempo lhes havia escoado pelas faces sem permitir-lhes maiores momentos de completo esquecimento. Isso agora pouco importava. A partir dali decidiram ser como aquela criança saltitando descontraidamente à frente, com o mundo todo por percorrer. Eles eram brasileiros, descendentes de uma Europa falida, herdeiros de um país gigante (?) e eram você.

Foto da autora

domingo, 23 de outubro de 2011

O dia em que perdi a cabeça



Tudo quanto aprendi parecia desaparecer. A borboleta que sempre me esperava no mesmo ponto como se posasse para mim, estava seca. O azul das suas asas transportava-se misteriosamente para as minhas roupas. Não consegui divisar mais nada além daquele espaço sem naturezas ou com naturezas que passavam para um assombroso e volátil desconhecido. Meu braço esquerdo tateou algo em que não ousei acreditar e se fundiu nas manchas sufocantemente vermelhas e verdes que ladeavam as margens, enquanto o braço direito dirigia firmemente a pequena deusa de metal.



Pedalei neuroticamente feliz, enquanto me certificava das vertigens gastas que adornavam o ambiente. Não obtive calor nem frio. O ar, exausto com a minha fome por velocidade, se estendia ao comprido das margens. Sem me tocar. Sem proferir absolutamente nada. Como se soubesse mais do que via nos aparatos do possível.
Imitando um ritualista, uma ninfa exterior veio monitorar o meu cérebro entorpecido com suas palavras decepadas: “Sou o desacerto. Talvez um dia comezinho com perfume de rosmarinho. Mensageira dos impulsos de setembro. Em minhas faces de Calíope age uma estrutura que nunca me diz adeus. Sou o amanhã de um livro inconformado que aceita os mais ávidos porquês. O seu não! Perdão, quase esquecia, sou o escorpião dos pareceres. A complexidade do simples, a licença quase sem veias – o descaminho.”

Ela prendera a borboleta e o pó vítreo dos meus azuis entre os dedos.  Não a conservei como era o meu dever. Não queria dever-lhe nada. Foi isso. Evitei desesperadamente a escassez daquela tarde bicolor.

O intervalo que não viveria de razões se apaixonou pela graça que reluzia ocultamente em todas as coisas. O bosque de todos os dias.  Minha incauta metamorfose beijou o irreconhecível.

No difuso túnel que deu início à minha não existência, comecei a suspeitar da humildade das certezas de antes. A definição dúbia das manchas tão vermelhas e tão portas, a veemência da bolha tão única e irremediavelmente verde provavam o meu candeeiro rarefeito, cuja concupiscência sequer se dava conta da lamuriante escolha que não fiz. O sol sussurrava alentos ao meu evanescente brilho porque não havia evidências de tornar-me maior ou mais do que somente minúsculo.

Do livro "Entre as Águas- 2011
Fotos:  Ariel Tavares
Piloto : Jeronimo Tavares

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Quinta Primavera de Museus tem como tema "Mulheres, Museus e Memórias"

5ª Primavera de Museus tem como tema "Mulheres, Museus e Memórias"
A Prefeitura de Cascavel, por meio da Secretaria de Cultura, promove a 5ª Primavera de Museus, que ocorre ente os dias 19 a 25 de setembro. Diversas atividades serão apresentadas, com o tema “Mulheres, Museus e Memórias”, proposto pelo Ibram (Instituto Brasileiro de Museus).
Pelo segundo ano consecutivo, o Museu da Imagem e do Som e o Museu Histórico Celso Formighieri Sperança estão inseridos na programação. A edição deste ano envolve aproximadamente 600 museus de todo o país.
A programação conta com exposições, show musical, peça teatral, palestras, contação de histórias, visita guiada e elaboração de colchas de memórias.
Segundo a coordenadora dos museus envolvidos e das atividades, Silvia Prado, “Este evento foi elaborado com o intuito de mostrar a realidade feminina e ressaltar a valorização da mulher em nosso contexto, ou por meio da história”.
As atividades da 5ª Primavera de Museus ocorrem no Centro Cultural Gilberto Mayer e em entidades educativas e sociais. A entrada é franca. Mais informações pelo telefone (45) 3902-1442.
Confira a programação
Exposição Fotográfica “Mulheres” com o fotógrafo, Fábio Conterno. Inspirada na beleza feminina e em momentos especiais que falam da realidade da mulher.
Local: Rua Rui Barbosa, nº 611 – Universidade Paranaense (UNIPAR).
Data: 19/09
Horário: 8 às 22 horas
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Apresentação Musical: Grupo Acácias. “O que Cantam as Mulheres”; Arranjos: Luciano Veronese (Produtor Musical) e Valécia Bressan (Profª de Canto).
Local: Rua Rui Barbosa, nº 611 – Universidade Paranaense (UNIPAR).
Data: 19/09
Horário: 19h15 às 20h20
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Palestra: “Retratos Matrimoniais: A Feminilidade entre Alianças”, ministrada pelo fotógrafo, Fábio Conterno.
Local: Rua Rui Barbosa, nº 611 – Universidade Paranaense (UNIPAR)
Data: 19/09
Horário: 20h às 21h30
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Contação de História: “A Moça Tecelã” de Marina Colassanti, contada por Janete de Souza Lopes.
Local: Colégio Estadual Padre Carmelo Perrone. Avenida Assunção, esquina com a Rua Cuiabá, Bairro Alto Alegre.
Data: 20/09
Horário: 19h30 às 20h30
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Contação de História: “A Moça Tecelã” da Escritora Marina Colassanti, dramatização do Grupo Trupe do Rabisco da Biblioteca Pública Sandálio dos Santos.
Local: Legião da Boa Vontade (LBV) - Avenida Brasil, nº 9749 e instituições educacionais e sociais a serem agendados.
Data: 23/09
Horário: 14h às 17h30
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Colcha de Memórias: O Museu Histórico em parceria com o Instituto Latino Americano de Sustentabilidade promovem a produção de uma colcha com o intuito de expor as memórias de mulheres com retalhos de tecido.
Local: Em instituições educacionais e sociais que desenvolvem trabalhos desenvolvidos com mulheres. Com a colaboração do professor Edson Gavazzoni.
Data: 19/09 – 24/09
Horário: 8h às 17h30
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Visita Guiada com o Pioneiro Valdir Webber
Local: Escola Municipal Profª Michalina K. Sochodolak
Data: 22/09
Horário: 15h
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Colcha Digital da Memória: A partir do relato das mulheres serão formados arquivos digitais, estes produzidos pela empresa Ecoeducar e representados por obras da artista plástica, Tere Tavares.
Local: Centro Cultural Gilberto Mayer (Rua Duque de Caxias nº 379 – Centro)
Data: 10/10
Horário: 8h às 17h30
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Fonte: http://www.cascavel.pr.gov.br/noticia.php?id=19986

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Entre as Águas

Porque nascer é preciso.



Amigos e Amigas, Público em geral,

Convido a todos a me honrarem e alegrarem com a presença no lançamento do livro de contos "Entre as Águas", que acontecerá em 13 de setembro a partir das 19 horas na Biblioteca Pública Sandálio dos Santos, Paço das Artes, à Rua Paraná, 2786 - Cascavel, PR.

Obrigada!


O evento conta com o apoio da Academia Cascavelense de Letras e da Secretaria da Cultura de Cascavel.

http://www.facebook.com/photo.php?fbid=218388201551832&set=a.218388194885166.59950.100001419602233&type=1&theater

domingo, 28 de agosto de 2011

Mescla




A felicidade de *|* tinha um arsenal de folhas para desonerar as luzes partidas dentro de si. Sua planta preferida, embora preferisse todas, não menos que os dias, era @ - a araucária – igualmente fértil e despretensiosa.


A @ costumava chamar *|* quando quisesse dar-lhe frutos ou aromas. *|* agradecia afagando-a com palavras doces só para contornar-lhe o viço contundentemente. A @ também conversava com #, irmã menor de *|*.

Numa tarde, sentindo as horas dobrarem-se níveas por trás das touças, *|* e # saíram juntas seguidas de perto por duas orquídeas e um ramo de alecrim. O perfume das orquídeas é parecido com o dos jasmins, comentou *|*. Ah! Não troco nada pelo perfume das rosas disse #.

Próximos ao cimo das pedras dois lírios silvestres, nítidos e exuberantes, pareciam esperá-las. @ percebeu do seu ápice frondoso, que os {} aparentemente imaculados espreitavam *|* e # de longe. Elas admiravam a brancura dos {} como se neles depositassem silentes fios de carícias.

Separam-se ao longo do caminho. Agora *|* afastada de # dava-se mais habilidosamente à diversidade natural que a circundava. Aproximou-se de outro bosque onde gostava de perder-se amiúde. Colhendo os segredos desmesurados das folharias, as já conhecidas pela botânica ou não. A Impatiens walleriana nascia espontaneamente nos arredores - era formidável observar-lhe a explosão das cápsulas de sementes a qualquer pequeno toque ou movimento. Do outro lado via-se o tronco da jabuticabeira, repleto de bagas negras e translúcidas – a seiva medicinal e doce. Cada emanação daquela irrestrita natureza tinha para *|* uma correlação indubitável com a vida.

O incômodo sossego dos {} ficara distante diferentemente de seu interesse pelas descobertas. Atravessou uma pequena clareira para alcançar [-] o alcaçuz. Acercou-se mais e encontrou também <:> a melissa. <:> poderia muito bem ter assistido seu nascimento, fazer parte da família, assim como o [-] lembrava-lhe sua # e os {} o homem amado.

Fechou os lábios para abrir um evanescente sorriso. A modorra tropical caia cobiçosa sobre cada mínima extensão de vida. A memória de *|* permitiu-lhe não esquecer o amor que a deixara há pouco tempo sem dar causas à inocência – preferira # e seus vestidos pouco sinceros ou sérios. “Com uma irmã assim quem quer fundar alguma família?” Ponderou *|* agarrando-se a um cipó que transformara num balanço. Inebriada e refletida numa dança cumpria um ritual esvoaçante como a falbalá que a cobria da cintura para baixo.

Pegou um maço de {}. Colocou-os entre os braços, decidida a levá-los consigo. Tropeçou num montículo de salgueirinha que lhe arranhou a delicadeza da tez. Lembrou-se do chá de <:> que lhe acalmara tantas vezes o sono indômito. Os {} escorregaram de seus braços e caíram no córrego, foram-se, lépidos, apesar da correnteza preguiçosa. *|* olhou para os lados. Lamentou como se chorasse – os lírios haviam ficado quase marrons como a fina lâmina de lama do fundo do córrego. *|* também sujara a falbalá, também se enlameara. Despiu-se para lavá-la na fonte límpida logo adiante. Suas pernas desnudas assemelhavam-se às longas hastes dos bambus.

Seu bioma era diverso, plural, quase desconhecido. Alcançou o [-] e colheu alguns ramos. As amoras verdes estavam amolecidas, prontas para deixar o pé. “Frutificam apesar do emaranhado de espinhos dos seus galhos, hei de ter algo delas no meu modo de existir.” Pensou *|*.

Se sim ou não, após sua passagem o bosque encharcou-se de suficiências mais significativas e gráceis. Vieram pássaros e borboletas. *|* já não recordava # nem o homem amado... recrudescia a cada passo no caminho de volta. A @ estava à sua espera.
Sem enganos ou reservas *|* cedeu à fertilidade das pulsões, recostou-se sobre a relva olente que desenhava lençóis dourados para acender-lhe a cútis cor de neve, o cabelo revolto e longo. *|* gostava do esboço suntuoso do vento, da sinuosidade rumorosa enraizando-lhe o ventre, o colo... quantas vezes fora sua única malga de carinho. Viu os pássaros em pares abrandando os voos. Os cabelos esparramados feito asas de purpurina multicor.

Uma revoada a mais e um espasmo, e sua febre dúbia já era rubor. Os {} brancos e perfumados trouxeram-lhe, como se sonhasse, uma raiz de [-] e uma polposa romã. *|* consentiu sabores, línguas e pedúnculos. Lírios e alcaçuz. Melissas e orquídeas. Bulbos e remoinhos de papiros d’África. A raiva da irmã. Juncos e flores inconspícuas. Vetiver e sementes. O homem que fugira sem a falbalá que sujara de lama ao correr atrás dos {}. Que já não amava. Que já não derramava em si nenhum segundo. Franziu os olhos e os fixou na @. Sua secreta e parca resina era água de patchuli ... um credo franzino, uma entrega – de *|* prorrompida em hastes felinas e seivas esguias.


A partir do original publicado no Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=5142


Tela da autora.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Me ninas dos Olhos



Me ninas dos olhos

“A nitidez é uma conveniente distribuição de luz e sombra.” Goethe

Resolveu conversar com as pupilas. Não havia como isentar-se dos reflexos – apropriar-se é perder.

Voltou para a rua. Sentiu, secretamente, uma indizível sensação de alívio ao perceber a possibilidade de atravessar grande parte do percurso sem permitir atormentar-se com sentimentos comuns. Multidões de visões perdidas. Afinal, quem assumiria sem o risco do erro, a licença para aferir com exatidão, ou total isenção, o condenável?

Investigou com toda a suavidade possível, detendo-se nos semblantes, tentando não infringi-los, como se adentrasse em sulcos intermináveis – usava materiais conhecidos e desconhecidos para percorrê-los, acreditando ter desenvolvido, ainda que rudimentarmente, um método eficaz de observação. Não se curvaria diante de nada imóvel, opaco. Altares da alma – assim chamava os olhares – como afugentar aquelas perseguições vivazes?

De algumas pupilas retirou distâncias, sorrisos plásticos, todas as fundições do arco-íris.  De outras, frases inteiras que mais pareciam um enorme luau de estampas confusas e céu.

Era possível ver um imponderável manto de cores e interpretar o que nem imaginava compreender. De modo que lia os olhares difusamente e, retratados na sua incredulidade interior, também seus corações.

Não havia outra aparência que não fosse a que definitivamente se destacava da estranha profundidade de todas elas, pela simples razão de não haver razão para serem diferentes do que realmente eram.

Havia um par, pulsantemente castanho e singular, que conseguiu prendê-lo, talvez, por toda vida: o que vagava dizendo-lhe o que via sem nada revelar, e que o fez absorver-lhe a voz com selvagem interesse: “Sou a dos sentidos de cristal, a afortunada sofredora que tem à sua frente o rol das futilidades repletas, a que nada promete, exceto que haverá encanto enquanto durar o mistério”.

(Desenho da autora)

domingo, 3 de julho de 2011

Marina


Marina
Uma secura afagou-lhe as águas fronteiriças enquanto a alma molhava-se de círculos.
Decantava sofregamente emoções submersas no percurso de ida ou talvez não...
o amor era um engano farto de ser-lhe ...pestanas mudas do choro desencontrado de já não saber derramar-se, a concha arredia desnudando a areia desconexa
o escrutínio intranquilo e definitivo dando-se ao alcance dos contornos, moles, enrubescidos em ápices arrebanhando o redobrar das horas, subindo ao ar em pequenas gotículas de sais dissolvidos em ondulação
...desidratava-se
enquanto salinava o perfume de um nome, a ardência da pele evadindo-se em refulgências geográficas, minúsculas velas de navios pequenos ao pouso de gaivotas gris – exotismos inextinguíveis – a marca não desaparece quando se subtrai o que a originou, ouvira dos nimbos e dos mergulhos marginais.
No outro refúgio onde dominava estranhos percursos, as marés começavam nos primeiros dias de si – o transcorrer dos anúncios próximos do oceano – e haver como obtê-los, sons e sentimentos, ah! os divisores de águas de onde vêem as lentes alucinadas da invenção – não entender o que se fora
...sobrevivia em percalços lábeis, desaparecidos numa qualquer intacta memória.
Para além da emoção, a inércia vigorosa ...fractal.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Passos


 

Um painel de pano descendo do teto. É neste espaço artesanal que se gravam as intuições, o surreal dos passos. Passos de antanho e de agora, de amadurecimento e frescor indeléveis.

As flores voláteis e douradas são a estrada de Alice. Depois vem o convite ao mar, num quarto pequeno, o buquê, natureza viva. No quarto maior onde a mãe dorme, a miragem, e novamente, em duas nuances uma linguagem de flores, o claro obscuro em escorridas e femininas liberdades. No corredor o lugar ao léu, a lagoa com três patinhos mansos.

Tem outra cena de lago e ocas ao poente lambendo a crueza das paredes.

O leite no escuro na sala da máquina de costura velha comanda outra vez a dança das flores junto a estante de ferro. Na cozinha os frutos suculentos da época. Em seguida, o novo do lago - não há como não refugiar-se nas águas - reflexos e beija-flores.
O que é isso que a desordem da vida pode sempre mais do que a gente?(Guimarães Rosa)

E os olhares urbanos aguardam algumas das que serão as últimas pinceladas.




Foto- Ariel Tavares

sábado, 28 de maio de 2011

Alquimia

a angustia de não me ter
desliza aos meus pés

vazio & fastio
espiam
no revés

rasa
bambu na tempestade
beijo o chão umedecido

arrancando do próprio sangue um motivo
cresce uma flor de milagre

surpreendo-me
cada lágrima é agora
uma alquímica rosa
exposta em minha sala

Tela -Vermelho Rosa- 2006
Tere Tavares  

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Aura




Não se importou com seu sofrimento. Estava ali por estar.
Os aplausos o agradavam como quando ouvia Beethoven. Não tinha papas na língua. Assumia todos os personagens de todos os livros que lia e dos que viria a ler, todos que encontrava dentro e fora do habitual.

Gostava de ser longínquo, conhecia quase a totalidade das sensações humanas, inclusive as “demasiado humanas”. Nitzsche o compreenderia bem. Parecia viver com a desenvoltura das águias e a sutileza dos ventos, cheirando a luzes escritas sobre ondas e areias – mantinha a suficiente distância que lhe conferiam a timidez e a vastidão dos verbos inquietos –  tão movediço quanto.

Atravessava o tempo com uma urgência tranqüila e constante. A geografia: segundo encanto, onde se demorava mais. Como se olhasse um raro espécime do universo, reconstruía para os outros a alquimia da compaixão. Era parte de seu cotidiano ser carinhoso, perguntar como vai, como não, desejar felicidades, muitas.

Claro estava que não importava na mesma proporção que se importava. Os amigos permaneciam desgraçadamente ausentes, propositalmente mudos. Prometeu que se interessaria mais pelos ensinamentos de Lao Tsé. Mesmo sabendo do seu estado revelava com toda a intensidade o comportamento jovial e sistemático: “Seja o que for possível até conhecer as possibilidades do impossível”.

Cicatrizava as feridas – as que sabem espreitar na inteireza dos vãos – com a liberdade autêntica de retornar a novos ângulos e umedecer o seu sol: “Terás vontade de rir comigo, e teus amigos ficarão espantados de ver-te rir olhando o céu”, solfejava-lhe uma criatura aparentemente angelical vinda das páginas de Saint-Exupéry, encorajando-o a prosseguir com avassaladora alegria.

Foto da Autora

terça-feira, 19 de abril de 2011

De um pensar contemplativo


Nada se reflete além da mansidão
Das emergências vazias.

Hoje é um dia importante
Não mais importante que outros dias.
Tropeços vivos, possíveis de entrar mim.

Vejo a gratidão pulsando. Mãos cálidas.
Para o que é certo a estranheza menos clara.

Agora sobre tintas e músculos saciados:
no alheamento desta solitude que arrebata meu espaço,
nunca senti minha pobre alma tão distinta alma.
Por que Eu? Por que a graça de rodar sobre isso?
À nudez da minha procura douro algum nascimento.

Meu mister traz plurais agilidades.
Também posso afagar meus tigres.
E Deus é os meus olhos no mar.
Dá-me, liquidamente, mais.

E o silêncio é Deus.



Poema do livro "Meus Outros"
Foto da Autora