Pré-agonia
Não importava o que fizesse. Não agradava. Grudava-se no seu aperfeiçoamento por que sentia um enorme prazer nisso. Era o que lhe importava.
Aquela iníqua aldrava não se negava à Andarilha de quatro trilhas e mil inteiros. Faria de efervescências os seus canteiros e de silêncios cônscios os reinícios, os bons vícios de que desfrutava sem tornar-se um Lama ou uma Madre Teresa.
Mas
Quase. Por calar-se e submeter-se aos grandes ventos dobrando-se, se preciso fosse, até rente ao chão. Ouve de Alguém: “Escapar. Sem fugir. Somente escapar Andarilha”.
O Quase lhe ardia feito um copo de vinho vindo dos barris que continham os rastros dos Pisadores que, com gosto, esmagaram as bagas arroxeadas e negras; os Pisadores que, do fruto dos próprios pés, nunca conheceriam o sabor de um belo gole – pois que furtado anteriormente à safra – os Pisadores que seriam, pelo Quase, engolidos como uma superabundância frustrada.
Andarilha, ainda no Quase e no seu Agradar embriagava-se bravia e refratária. Escoava-se como um cêntimo dos poemas de São João da Cruz: “Não posso prometer que virei e, quando venho, sou sem duração, sem aviso e nunca sozinha. Creiam-me. Não pendo dessa ferrugem, nem desse erro grudado na minha garganta. Porque o Tempo”.
Quanto mais a noite prosseguia e a lua se anunciava, mais pronunciada tornava-se a sua memória, mais febril e frágil era a mina d’água que o agora lhe negava, guardando-se para quando findasse o vácuo, o desterro de sabê-la exilada da Terra. Diz-lhe outro Alguém, num insolvente obséquio, como se ressuscitasse a cada sílaba e sufocasse, do início até o final um sinto muito: “Esses nódulos espalhados pelo corpo, das palmas das mãos à planta dos pés, esses que com o mínimo pronunciamento reavivam-se, recidivos, são todos os nãos que deixaram e deixam de serem ditos. São esses nódulos que, irremediável e invisivelmente, nos curam. Só quando atravessamos o negrume estamos prontos para abraçar a claridade. O tempo humano não é o mesmo de Deus. Minha Menina. Sinto muito”.
Andarilha aprenderia sem, contudo, deixar de apreender, como se não lhe importassem as desculpas que o Mundo, insubmisso, lhe pedia. Seguiria no contrassenso da Garra, como um Gato aguçado pela essência de um Leão, discordando da máxima de Kafka: "Há esperanças, só não para nós".
“Todo nó tem o viés e o revés reavivado no Verde. Nós também. A luz só é importante porque a escuridão é necessária. Por isso me chamo Andarilha. Nada, além disso, me representa ou me precede com tamanha exatidão”.
do livro de contos A LICITUDE DOS OLHOS Penalux- 2016
Francisco da CunhaÉ um trecho do livro "A licitude dos olhos" do qual li alguns outros trechos, mas não a totalidade, tarefa para depois. Entretanto, há algo que me intriga sempre nesses textos da Tere Tavares, algo cifrados, com muita simbologia, tanto de nomes
patronímicos quanto de nomes de outra natureza animal ou não. O texto corre, e rápido, no ritmo desnorteante, num quase alucinação. O "entrecho" mal se percebe ( mas o há) nos faz pensar em coisas como um voz oracular com construções sentenciosas, aforismos, máximas etc., um desconcerto de caminhos e saídas na narrativa com tendência a citações que indiciam autores de primeira linha da literatura universal. Está-se diante de um texto com estrutura complexa, enviesada, apontando para direções várias no tempo, no espaço e na condição existencial. Sua hermenêutica exige aparato crítico de maior curvatura, pois nos desafia a penetrar em caminhos ínvios exigindo abrir clareiras da parte do intérprete. inclusive não podendo este negligenciar a questão de genologia e suas formas de narrativas contemporâneas.
Francisco da Cunha e Silva Filho.