Prefácio por Carlos Emílio Corrêa Lima
Literatura em estado de
ânimo
Exercícios cósmicos de um
novo sol, fêmeo, de mar doce e longo, sinuoso, um novo sol de estio e estilo.
Depois, prontas as águas da escrita-chuva, chovem por novos sulcos da terra,
súbitos outrados sentidos, rioutros. E se ergue uma onda de mar de dentro da
selva salva da escrita nesta inédita timbragem textual de fibras, ondulações de
sentido, conexões novas entre coisas que jamais antes haviam se unido nem em
Dante; nesta escritantena, encontra-se o que nunca fora pensado e sentido
anteriormente e, desse modo, mostrado a nós, leitores desacostumados ainda a
isso que ali surge pela primeira vez. Mas não é neosurrealismo embora pareça,
também não é o método cut up do William Burroughs aqui tamborilado, não é
herança da poesofia dramática de Clarice Lispector, esse tom desconhecemos,
versos que saltam de uma prospecção frondosa de uma prosa assimétrica, ao
absurdo que é bordado com fios e cabelos doidos de uma avestruz linguística que
ciclomeu dos frutos de ouro longe, das bordas do invisível. Sabemos
invisivelmente como é, ping e pong de tintas e tudo começa a pintar-se de uma
outra forma, com desexatas desatadas novas configurações. O figurativo aqui
instala-se abstrato, nada que se pareça com as formas habituais do escrever e
do dizer a que estávamos acostumados. Os verbos soam sempre mais longe do que
ser, haver e estar, os verbos escolhidos e colhidos entre estalos de cristal e
rugidos de silêncio que os torneiam de novas peles, outras conduções ideativas.
Tudo cresce 10 textualmente, proliferante, nesse enverdecer do dizer, nesse
manual de estilos aleatórios autodiccionais. E de modo algum são também
gongorismos desestudados, aqui estuados em pleno século XXI, rotores dados. A
maioria dos textos aqui porejados são perfis, gênero literário que vai muito
esquecido, abstradamente aqui praticados com esmero e interlúdios. Rilke e seus
conselhos a um jovem poeta transita em treliças por aqui, essas intercaladas
sinuosidades, esse método outro do dizer. Não há modo previamente existente de
se avaliar essas frases riquíssimas, de imagens ambivalentes flutuáveis, que
são mais do que frases estéticas, palavras a escorrer. Segue então essa nova
forma de realizar imagens, forma mais incorpórea, porque não familiar, resina
fresca. São poemas sem espaços entre os versos, parecem textos de propagação de
uma estranha espécie de inteligência sobre-humana, mais do que artificial, onde
as frases decolam de si mesmas para o que não sabem, foras das cores e formas
conhecidas.
Não são contos, nem
poemas, nem prosa poética, nem poemas em prosa, nem crônicas aladas de efusivas
transparências velocíssimas, mas novos almejamentos, novas vontades da e 11
inacessíveis, inatingíveis cambiantes fluxos fraseônticos. Muitos, ou quase
todos os trechos dos textos desse livro são de uma luzência hermética
atordoante. “Campos errantes”. Este livro autodenomina-se assim, é o que melhor
exemplifica seu movimento, cada capítulo-conto-perfil-mancha é um minucioso
manifesto estético, com minúcias e fímbrias jamais vistas. Cada vez mais, à
medida que vamos nos adentrando nele, ocorrem citações invisíveis, uma
filosófica narrativa, pois o narrador é um coletivo de um ser indeterminado,
que não se manifesta fisicamente, não sendo portanto, um narrador autoritário.
Um narrante errante coletivo universal. Alguns dos textos em coro fractal desse
livro de Tere Tavares me fizeram lembrar o primeiro livro de contos de Gilmar
de Carvalho, seu isolado e desbravador Pluralia
Tantum, publicado em meados dos anos 1970, pois também esse livro
cearense-universal enfeixava experimentos em cada uma de suas entradas e
picadas na mata da linguagem.
É como se voltássemos, em
outro nível do tempo, em outra enseada e vertente da história literária às
manchas e fantasias, às silhuetas, gêneros literários não mais nomenclicados
hoje em dia, como se estivéssemos num interregno, numa mudança de rumos dos
rios coletivos da linguagem. Estamos num pré-nascer de uma legião de
sucedimentos de uma linguagem-pensamântica prosperante que ainda não sabemos, e
nem podemos com os recursos teóricos atuais, delinear. Esses textos expõem-se
soantes exuberantes em suas pré-formas, desdirecionando tudo a que estávamos
ritmados. Trechos de flora teatral, filigranados, línguas botânicas, bafejam
seus dramas de elixir em nervuras e grafemas entrincheirados. Personificações,
prosopopeias, ilusionisimos, vertigens, clarividências, fibras cantantes,
estrelas falantes, frases farfalham como galhos a beber nas suas 12 atiladas
pontas, águaluz. Muitos dos pós-contos aqui parecem a tradução em palavras de
um vitral art-noveau de ferro e vidro multicor, náutico-alado. Tudo no “lápis
do improviso”, ou pictóricas teclas líquidas de tinta do escrito, segredos
fonéticos do acaso estruturado são ditos em remos buscantes e folhas
reposicionadas, repronunciadas. As citações, as frases das falas escritas entre
aspas, onde cada frase é um manancial que se refigura e que se conjuga a outra
frase-manancial numa tapeçaria líquida que nunca se evapora, fluente de dizeres
escritos na fímbria do insistir adentro do espaço a que nunca antes se chegara,
pois são dizeres nada cuneiformes, sempre glissantes e mutantes, num
desarquivamento-relâmpago, são poemas numa nova forma do escrever... Flashes,
perfis-flashes. Um misticismo arcaico e esotérico que se fantasia de novas
particularidades. “Captura da ancoragem”. Frases quase incompreensíveis – e o
que mais belo que isso? – em busca de psiquês. A narrativa nunca é veio, mas se
incorpora em forma de cantaria caligráfica, desepicentro amarelo de todas as
cores móveis, água vidente de vias e rumos, tendões de água direcionada, de
jatos cruzados vindos de todos os sentidos, uma nova prosa simbolista à vista
da leitura, jogos pictóricos da linguagem, uma reciclagem dos símbolos, uma
linguagem com milhões de lados, uma poeira sonora de mitos porosos, desconexos,
dos espaços regirados ao contrário do contrário. Máximas misturadas com
narrativas, e narrativas em miniatura, novas citações, aromáticas, de aromas
que fogem a qualquer som e significado. Mergulhando e entrando no sentido e
saindo fora dele, de qualquer significação mesmo aquelas mais fora de tudo que
até então havia sido dito ou entoado, axiomas ditirâmbicos fora dos âmbitos, um
manual filosófico de mil sendas ambulantes, caminhos libertos de suas rotas e
acrobáticas estradas que saltam no infinito. Gritos e 13 calmores em dúbios e
ambíguas nervuras tipográficas, silábicas, sonoras, flutuantes estórias
não-narrativas, quentes clamores do escrito. Os versos são escritos nas frases,
sem problema, com relativismos em constante aceleração imagética, tecendo
velozes combinações verbais inconcebivelmente transitórias em sua externa casca
textual, nada ruidosa, silenciosamente discursiva. Poemas textuais.
Transistórias. Não-estórias, transístores. Quase perfeita e esmerada, navega a
embarcação de esmeralda altíssima da escrita, com seus enigmas florais
intervaladados, do recém-inventado ultra-dizer, treliças trêmulas de orvalho e
leitura interestelar, proliferação de signos inovados, compêndio de experimentações
textuais, como jardins indecifráveis, oscilantes. No final do livro, depois dos
grandes voos de tapeçarias flutuadas navegantes, há três contos e meio mais
narrativos, agora mais como flutuações mais estruturadas sobre a grande trama
da água da linguagem da autora, que são como réstias de um livro futuro de suas
mil e uma mãos. Este aqui é, entretanto, um composto experi-mental de
iluminações, seus eternos cadernos da linguagem recém-chegada do desconhecido.
Carlos Emílio Corrêa Lima
– Fortaleza- CE