PREFÁCIO
(ou para escutar os acordes desta Linguagem de Pássaros)
Luís Filipe Pereira *
Tere Tavares resgata nesta obra, por via da poesia, o poder da linguagem para (re) nomear o mundo, escavando neste um volátil e inesgotável campo de experiência onde a língua, reabilitada pela sonoridade primeva das aves, age em todos os sentidos, propagando-se numa rede de caminhos que se entrelaçam à verticalidade do voo. A premissa maior deste labor poético é, por metaforização e animismo de pássaros falantes de uma proto-língua pregnante de sons e de musicalidades, o triunfo sobre a resistência da linguagem para que ela se metamorfoseie numa pura, funda e imponderável, ressonância do nosso mais originário ser-no-mundo.
A linguagem poética da autora encontra, ficcionalmente, na linguagem dos pássaros, uma modalidade de ascese, de verticalização e de errância, ousando o voo sem mapas nem bússolas, para criar territórios outros, como que de asas cingidas em torno do canto que celebra o fulgor do mundo, o enigma da linguagem, o fascínio do Ser. É adentrando-se nesses meandros verticais que a autora abre o flanco dos versos ao silêncio. Um silêncio que vibra, altissonante, nos interstícios de uma linguagem que devenha ponte suspensa entre o mundo e as coisas por nomear, que seja íris de coisa alguma e, simultaneamente, pupila deslumbrada sobre a totalidade do possível que se dá a ver como verbo silente de plurais conjugações, sempre intervalares, intersticiais, sempre irrompendo numa aberta porosidade, advindo de uma incomensurável espera, de um desejo que permaneça desejo, plena abertura ao renovo do voo: espera-desejo percutindo o rumor da âncora, esse fio que se perfuma no corte manso do instante. Instante onde assoma, afinal, a linguagem das coisas não nomeadas, essa linguagem que mergulha no seu abismo, no zero da significação, para que venha à tona o vaivém desse verbo, quiasma de silêncio e som, que refunda a linguagem desde os seus alicerces mais subterrâneos para que possa desvelar as feições incontáveis do mundo, esse poliedro sonoro, essa paleta de sentidos. Para tal, conduzem-nos estes poemas até ao silêncio nidificador e ninho onde a voz se enleia ao balbucio das aves, à gramática da deriva dos pássaros, ao seu idioma infixável, à sua luminosa sintaxe, nimbada de estrela e raiz e chama.
Nesse universo onírico que alavanca a realidade, os versos surdem como braços-asas – braços manchados de luz – tornando-se o sujeito poético num ser arborescente que no tronco do poema traça a propagação da música desses pássaros errantes ou a sua contenção numa ave deserta, rumorejando aquém e além do tempo que captura a linguagem nos acerados dentes de Chronos. Triunfar sobre essa resistência do Logos é perscrutar uma música originária, pautada em felizes aliterações – no sopé do sol – compondo toda uma melodia poemática capaz de revelar aos leitores a nudez da fala.
Encontrar essa linguagem indireta, esse canto do silêncio, implica uma atitude de despojamento da convenção, do monopólio da racionalidade; reclama uma fértil ignorância (douta ignorância socrática), um aventurar-se pela ausência de entendimento, pois, como rosa de Silesius, o poema floresce sem porquê. Significa este traço desta obra que o poema como que perde o pé, transbordando as margens da fala falada, da museologia morta dos tratados, das verdades, das certezas, das razões, para que possa advir inteiro, liberto dos freios de uma racionalidade asséptica que tolda o fluir inesgotável do imaginário, a ardência de uma saliva outra, de um hálito outro, de uma sílaba outra, o dinamismo amante de sístoles e diástoles. Só assim, pode o poema respirar o sol em tua boca; renovar a voz no lugar sem lugar de amplexiva ágape, onde tudo é sutil, tudo é próximo e insidioso.
Eis pois uma obra poética que nos desenha um fabuloso mapa aéreo, uma rota das aves, uma geo-grafia em que experienciamos a insaciável fome do som onde, como ferida incicatrizável, se inscreve a linguagem de pássaros na compulsão do verso. Eis a ficção soberana de uma fala no anverso da fala, na fratura de uma linguagem que cede perante o desiderato de inaugurar o reencontro com os sons matriciais de um mundo do porvir, de uma branca melodia que instale na casa arborescente do poema a infinitude do possível, matizado de todas as cores, dando-se numa paleta de timbres e de assombros num versilibrismo tenso e coeso, carecendo dos pássaros para abrir as manhãs, para abrir, em transparência e horizonte, mundos com o sol a soltar-se entre os lábios.
Eis uma poética tecida através de imagens que balançam entre a infrene simplicidade e a máxima abstração, esta última enquanto atestação da linhagem reflexiva da autora (porquanto o horizonte reflexivo é uma marca indelével desta poesia, traço que já encontramos em anteriores obras de prosa da autora), bem como da sua propensão, como patenteado nesta obra, para uma experiência do exílio, do nomadismo ou do trans-bordo; errância por via da qual se cruzam a real e o irreal, conquanto seja a irrealidade do onírico, do imaginário, da força sinestésica do sonho e da metáfora, que fecunda a própria realidade, alcandorando-a a novos rizomas de possibilidades, outorgando-lhe uma intensa expressividade fónica. Uma poética, pois, que transporta a marca da incompletude, do ritmo intervalar do silêncio e do canto, dos indícios da perda, mas que, simultaneamente, nos convoca para um espaço de fascinação lúdica, que é também espaço de despossessão, de regresso ao sossego irreflexivo das fontes. Uma trajetória árdua, porque a impulsiona o desejo de ascensão sem deixar de enfrentar a condição humana, a sua plêiade de resistências e confinamentos: porque tenho asas e lodo. Então o regresso é, de forma oximórica e tensional, também um intrépido retorno do que não há, que nunca deixa de manter viva a dialética com o gerundivo retornando de um sempre/na loucura/de um supremo gesto onde os pássaros pousam.
Eis, em suma, nesta obra poética de Tere Tavares o encontro com o «dizer projetante» a que alude M. Heidegger, que posso traduzir, em consonância com o que soube ler nesta sinfonia poemática, como a constante preparação da fala que, ao mesmo tempo, faz advir, mediado pela efabulação de uma linguagem de pássaros, o silêncio do mundo. Concerto da dizibilidade e da indizibilidade de que este livro é uma feliz prova.
*Luís Filipe Pereira – Licenciado e pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Licenciado em Literatura Francesa. Pós-graduado em Criações Literárias Contemporâneas. Mestre em Teoria da Literatura. Escritor e poeta. Com diversos textos (ensaios, contos, poemas, resenhas críticas) publicados em diversas antologias e revistas de literatura portuguesas e estrangeiras. Autor do livro de poesia A Tela do Mundo.
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