Na sua coluna "Minha Lavra do teu livro" de Nic Cardeal, que vai publicada na Revista Ser MulherArte e transcrevo na íntegra
“A Literatura é um estado de alma, uma sensibilidade inata que se talha na constância e na curiosidade: haveria como moldar a alma sem ferir-se? A pele que me veste é uma estratégia. O sonho, quando consciente, é quase a antecipação da realidade. Que essa outra forma de parecer real me seja perene, porque todas as realidades são relativas conforme se adentra na engenharia do mundo.”
(Tere Tavares, in: ‘O aroma da alma ou todos os nomes’, Destinos desdobrados, p. 101)
DESTINOS DESDOBRADOS é um dos mais recentes livros de TERE TAVARES, publicado pela Editora Penalux em 2021. Na maioria dos 73 contos, curtos ou longos, a escritora escreve sobre mulheres, ora sendo a própria protagonista, ora escolhendo suas personagens e as esmiuçando, na busca pela compreensão da alma feminina.
Logo no primeiro texto, deparamo-nos com seu testemunho explícito pela necessidade da palavra para a sobrevivência da mulher no mundo:
“Começo a desorientar a realidade. A ficção nada mais é do que um naufrágio salvador, um outro aspecto do real que possui suas próprias vertentes. Escrevo, seja qual for a estação, porque sou uma eterna enamorada por palavras. Algo de mágico exala-se da paciência que não sei ter. Não se trata de pressa, mas de uma espécie de urgência na mente, a travessia do espanto que me exila da assoberbada lonjura do tempo, da injúria que tenta subtrair o Sol do meu rosto e, inglória, abate-se antes de atingir-me. Enfrento o terror da estrada coberta de perigos, o pasmo ante o silêncio sombrio da morte, o desmoronamento; é tão profundo mergulhar na alma que me reformula como se argila novíssima.
O ritmo vivo do meu ser rente às flores, testemunha-me o sorriso. Dá a ti mesma esse presente e destrói os ídolos, diz-me a voz desde a primeira fêmea nascida. Irmana-te a todas as mulheres que foram testemunhadas pelo assombro. Não coadune com a exortação prenunciadora da perda da sanidade e da aceitação da mentira dos milênios que te concernem culpas e incúrias. (...)” (p. 14) (sublinhado meu).
A escrita de Tere Tavares, embora seja narrativa, também é prosa poética, pois encontramos pura poesia em seu modo de dizer, que me faz lembrar muitas vezes da 'introspecção', ou do 'lirismo' de Clarice, como mencionou Chico Lopes sobre Destinos desdobrados: "(...) Certamente, vemos aqui o mesmo lirismo desenfreado, a perplexidade existencial constante, de uma Clarice Lispector em "Um sopro de vida" (...)".
Tere demonstra que é possível, sim, a plenitude da palavra, ainda que na (in)compreensão do universo feminino. Seus contos são permeados de tons filosóficos, de percepções, de insights, de denúncias do cotidiano, e é como se a autora, por meio de suas personagens, desdobrasse os destinos de todas as mulheres em múltiplas possibilidades de compreender o quase intraduzível sentido do feminino – apenas compreensível [ou quase] por aquelas almas que se atrevem a vir à Terra ‘vestidas’ de mulheres. A autora pesquisa a vida em seu âmbito cotidiano – ao mesmo tempo atenta às reflexões, metáforas que o permeiam, como uma fiel observadora das linguagens sutis da alma humana – trazendo à escrita um aviso: é necessário que o mundo se subverta em novos futuros – onde a mulher seja reerguida, considerada em pé de igualdade ao sexo oposto. Por isso mesmo e, creio que propositalmente, seus contos sejam ambientados nesse 'estranho agora', para que possa extrair de suas personagens a urgência que todas sentimos – de nos resgatarmos do luto que perdura há séculos: o luto das violências machistas corriqueiras, misóginas, que nos deixam constantemente atordoadas diante da realidade. Então, ela escreve: “(...) Pelo fim da violência contra o ser feminino (...)” (p. 18); ou, ainda: “(...) No Brasil, morre uma a cada duas horas, de cruzes, de fogueiras, de facas, de balas, de murros, urros, assédios, estupros e vociferações, pelos motivos mais torpes, ou mesmo sem motivos (...)” (p. 132). E adverte:
“(...) Quem escreveu a história sempre foram os misóginos que tiveram em mente um único ponto de vista: as mentiras e a crueldade dos carrascos e dos opressores. Por mais que o tempo passe, a história não erradica a herança dessa ancestralidade; chão de contínua e imperdoável tragédia. Só é possível compreender o mundo com os princípios do ser verdadeiro, a liberdade ampla, o respeito mútuo, a compaixão e sabedoria.
O que nos torna verdadeiramente humanos é a palavra, ainda que não seja pronunciada" (p. 65).
Nós – mulheres (e, quem sabe, alguns, vários, muitos dos homens?) – reconhecemo-nos em Tere Tavares, nas suas mulheres de Destinos desdobrados – 'Umadelas', Aborim, Ela, Deméter, Junaha, Hastha, Menimma, Thessa, Thuarta, Nidaba, Mirmaha, Thagiah, Luiha, 'Vidaedor', Teresa, Tebash, 'Amulherqueescondiaorosto', 'Amulherquefoimãe', Lívia, Lisvaliasa, Freya, Mirnia, Flordelis, 'Amulherquedesejaser'... quantas mais? – mulheres-metáforas, mulheres-palavras, mulheres-urgências! Porque somos insubmissas e intranquilas, sufocamos ou gritamos, somos sobressalto e quietude em um só ato, porque, como bem disse Gustave Flaubert (citado por Tere), “a mente humana é comparável a uma borboleta que assume a cor das folhas em que pousa. Você se torna o que contempla” – não apenas por fora, no mundo em que caminhas, e mais ainda por dentro, nos campos em que tua alma – original – habita! E a autora anota: “Minha mais bela obra de arte, talvez, seja minha própria vida” (p. 23). Quiçá seja por isso que as mulheres ecoem uníssonas entre passado, presente e futuro, em cada uma de nós:
“(...) Rio, com desespero, as mulheres mães filhas meninas avós que ressoam em mim e dançam em torno da ceia as injustiças que lhe são impostas [todas elas se estampam, impiedosamente, nas instantâneas manchetes midiáticas e logo são esquecidas, enterradas, pranteadas e, contudo, gritam: até quando a tirania sobre o nosso ser, esse caminhar como personagens-espelhos de um solo incerto, sendo servas ou cevas da banalidade e do crime?]. Rio, como um ato de denúncia e revolta perante o inevitável, rio do que minha memória ajunta; rio da solidão; na sorte e no infortúnio, rio de mim; toda a dor sucumbe quando encontra o riso: essa é toda a fortuna, o único pilar que pode levar-me a alguma felicidade, então eu repito como se gritasse, para todas, um porto, uma pista, uma faísca: ama, antes, a ti mesma, ou tudo será em vão. Porque é preciso justificar a velocidade da vida. (...)” (p. 33) (sublinhado meu).
A autora parece se tatuar em cada texto, como se os vários destinos de si mesma, no universo da escrita, também se desdobrassem em realidades paralelas, onde sua alma navega – íntegra – ainda que feita das múltiplas peças de um mosaico. Nessas suas ‘tatuagens metafóricas’, encontramos diversas reflexões sobre seu viver no mundo. Por exemplo: “(...) Que o pesadelo é estar acordado, que o Universo nem sabe que existimos, apenas compreendemos que temos um papel, um átrio onde agimos; isso nos importa e é parte do que tanto investigamos; nanopartículas, nanométricas, nanofios mensuráveis ou anônimos, mas sempre em movimento a traçar os destinos. (...)” (p. 71). Embora essas ‘tatuagens’ sejam em sua maioria femininas, a palavra de Tere é amplificada para além do gênero, da forma, da matéria. Seus contos não são apenas contos de narrativas estanques no espaço e no tempo. Não. São devaneios metafísicos e, pensando assim, lembro do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard: “A imaginação, em nós, fala, nossos pensamentos falam. Toda atividade humana deseja falar. Quando essa palavra toma consciência de si, então a atividade humana deseja escrever, isto é, agenciar os sonhos e os pensamentos. A imaginação se encanta com a imagem literária. A literatura não é, pois, o sucedâneo de nenhuma outra atividade. Ela preenche um desejo humano. Representa uma ‘emergência’ da imaginação” (in: ‘O ar e os sonhos’, p. 257 – sublinhados meus). Em seus devaneios, Tere Tavares escreve contos que se entrelaçam em uma única meada, pois podemos lê-los como fios condutores que nos conduzem a uma mesma direção – aquela da 'consciência de si' de que fala Bachelard, que vai preencher essa emergência da imaginação humana – como UM todo. Então, é como se finalmente acordássemos do sonho por dentro de nós, sob o olhar 'clínico' de C. G. Jung: “Quem olha lá fora sonha, quem olha por dentro acorda” (também citado por Tere, p. 73). E, nesse meu devaneio sobre os devaneios de Tavares, volto a citá-la: “(...) Às vezes, o afeto é como um fio finíssimo que, para viver, necessita apenas que o saibamos unir para que nos acompanhe para sempre, como um contínuo fato de resistência. Há que multiplicar os olhos usando todos os sentidos, os visíveis e invisíveis. (...)” (p. 87).
Sim, os Destinos desdobrados de Tere vergam-se até que ela mesma também se desdobre quase biograficamente – na metáfora da palavra o escritor constantemente se desenha – e nós, leitores atentos, teremos a possibilidade de reconhecê-lo, ainda que sejamos [todos] limitados em nossa capacidade de decifrar o outro. Ela diz: “(...) Se me perguntarem da Mulher anterior a mim, direi que a conheço porque dela sou descendente; se me perguntarem da Mulher que represento hoje, sou eu, e eu não me conheço, e, nesse não conhecer de mim, eu caminho sabendo do rumo que não chorará o balançar das minhas saias e saídas, do tempo lento que, como o piar de um pássaro, sustenta as asas que não sei ter, porque sou humana e voo no imaginar. (...)” (p. 97).
Há muitas perguntas nas reflexões de Tere Tavares. Ela sabe disso, porque diz: “tudo existe na procura” (p. 105). Por isso, seus contos se sucedem em uma contínua busca por respostas, fazendo-me [outra vez] lembrar de Clarice: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever” (in: ‘A hora da estrela’, p. 15). Ao mesmo tempo em que procura, Tere já sabe de antemão, como se lesse em si mesma o presságio da palavra: “(...) Nada tenho a dizer, senão que a vida tem sua própria sabedoria e, embora o esforço, nem sempre compreendo tudo. Viver cada momento, ultrapassar cada linha que se fecha no horizonte, rir à vontade ainda que haja motivos para não rir – eu te compreendo e estendo as minhas mãos, ouso ser todas as mulheres que te possam dar sossego, mesmo ao seguir-te sem que repares, erguendo-me como irmã ou amante ou mãe, de um sangue anterior ao meu, ao nosso, talvez a que não se importa com a garganta do tempo: imaginando-o pelo tremeluzir dos olhos, prevendo o quanto ainda viverás e, que o fim, quando vier, será indolor (...)” (p. 144). Talvez, por esta razão que a autora não sossegue da escrita – ou será a literatura seu melhor descanso, na tarefa tantas vezes extenuante de viver? Quem sabe... então, ela diz: “(...) Só a alma é capaz de responder e, comumente, ela nada exige senão que a encontremos em nossa armadura de carne e osso (...)” (p. 99). Penso que Tere Tavares já a encontrou, pois sobre ela – a alma – escreve sua palavra. Ela também já sabe que nenhum voo será tardio, porque somos – todos os que navegamos nas 'escrituras' – os construtores da imaginação. Quando regressarmos aos ‘princípios do devaneio’, como já advertira Bachelard, por certo compreenderemos que o voo não está na asa, nem o caminho nas pegadas – “porque tudo é vastidão” (p. 169).
(Nic Cardeal)