Aqui ficam dois Contos publicados na Coletânea de Prosa e Poesia, idealizada por " EscritArtes" Goreti Dias e Dionísio Dinis: "A arte pela escrita Nove" Edição da Mosaico de Palavras Editora, Portugal - PT - 2016. A esses amigos e escritores que se empenham pela difusão da Literatura Lusófona, a minha gratidão pela partilha.
Tere Tavares
Mudar ou o contrário
Algumas geografias são de fato inquebrantáveis. Tocante, aquela confissão autobiográfica que brotava levada por alguém e, por outro alguém, executada.
Há tudo nesse âmago inacreditavelmente vivo, feito as imagens captadas na extensão das lagoas canceladas, como uma faísca, próxima aos ninhos das corujas e seus gritos a promulgarem defesas de algo que, longínquo, é a instância que mais preza e, mesmo calada, lhe diz que, ao adivinhar-se, é também uma sublimidade, uma sofreguidão, um lugar para os berços que nascem reclusos e, ainda assim, emitem sem cessar o clamor por um plasma benigno.
Por vezes, Hashira pergunta-se onde esteve antes de ali, em que redoma reduz-se para não encontrar-se noutra composição. Sente-se como pequenas fileiras de tinta que percorrem trajetórias opostas, que jamais deixam de se cruzar com o carinho apenas adivinhado. Não há tempo em que não deseje se repita o dia. De todas as ausências, a que é balanceada pelo consenso, é a mais temida.
Dobram-se as horas de ficar. Os sorrisos de ontem aguardam um novo amanhecer para sentirem-se novos. Há uma simulação ou um disfarce nas habitações sombreadas de fuligem, uma inexpressividade pairando sobre algo que já não vive. O mar acomoda-se. Solitário aparentemente. Ali só faltam aqueles que o invadem [e só no verão que distante ainda]. Tudo silencia e se move. Mesmo o corpo, quase aniquilado, suspira. O ar. A amargura não vertida.
Não há piedade sobre o que se exila como se pequenas portas. Não há importância no que definha consciente de que nada há que se eternize. O sol faz desenhos sobre as construções. Tanta é a sonoridade. Os amontoados que se sublinham de beleza.
Sublima-se Hashira em seus vestidos por desfazer. Um desconhecido lhe dá guarida mesmo que quase morta: “Não se parte antes que chegue a anulação total. É preciso manter-se de pé e sorrindo, sorrindo, sorrindo – não te esqueças; gargalha se for preciso, ainda que haja o lamento e, quando lamentares sorrí, mas sorrí como um astro do qual, ninguém que tenha provado o brilho, esqueça. Há algo melhor à tua espera e não tardará. Lembra-te sempre. A mulher que és trocará de roupa novamente. Repito. Aguarda a muda. Não te apresentes antes que sintas que ela tenha chegado intacta, rumorejante. Sê”.
“Eu não sei por que me escolheram. Não sei da minha trajetória. Já não sou eu que piso as transmigrações, mas elas. Então não compreendo. Se me pedem para não desesperar, com que propósito permitem que eu insista? A dúvida retalha-me o raciocínio. Clamo por luzes. Por pés que saibam à solo e água e algum retalho de firmamento”.
A mulher dos vestidos por desfazer, se recolhe. Já não se importa se perde tempo ou se não há tempo a perder. Perde-se simplesmente. Órfão. Sob o chuveiro aceso. Toda ela aceitação e sublimidade. Um capítulo mais desmanchado na sede – agora esfuziante. Queria que tivesse sido possível não socorrer tantas interrupções. Banha-se com o unguento dos que já não suportam saber a pedras. E sobre ela dormita, descerrada, a solidão, tranquila e absoluta.
E Ankhir. Contrito. Desfeito numa tempestade isenta e não titulada, havia sido herói num único momento. O lume fosco da lua fosforescia à sua frente reconduzindo-o, tremulamente, sobre a lâmina cujo enfoque seria a metade subtraída, e, fruto, tudo o que viria derramando fugas, esticando distâncias e vigiando memórias quase fósseis no cíclico giro onde coube o seu rosto, que, inutilmente, entremeava-se, brando, fundo e silencioso nos indícios inexplicáveis. Hashira. E como um velho fogo, Ankhir falhava entre os fios moventes, exilado pelo esquecimento, cuja trama e antevisão, devastavam-no e, imediatamente, reconstruíam-no, para que atingisse alguém que tivesse, como ele, a paz como único receptáculo para a saudade. E roçava-se na forma primeira ainda que num diálogo impossível: obter a honra, o descanso elevado.
Sonhos e Sensações
Maria caminha. Dispersamente. Sair do aprisionamento que a veneração ao eu e seus tentaculares perigos edificou reivindica um esforço hercúleo. Uma vida inteira pode não ser suficiente para mover-se ao encontro do outro.
“Alta é a tormenta dos verbos inúteis. A escuridão cobre quase tudo e, nesse quase, por momentos, deposito a intenção de atrair algo que me valha. Não são os livros, capas expostas, as necessidades, as falas obrigatórias impondo-se à vida. Nem a chuva é responsável por essa suavidade que me escava. Nas minhas linhas repousa o instante inaugural de tudo o que existe.
Os apontamentos e os olvidos veem-se assustadoramente atordoados. É da vaidade a culpa de tantas pérolas mortas. A morte é um adormecer que não sonha. Porém, as flores sempre voltam mesmo que as raízes não existam.
Indignamente sobrevivo sem saber se me cubro com a sanidade. Vou-me para o limbo antes do fogo ser armamento. Quem me dera sentir-me algo mais adiante do barro – sou minúcia a tentar escapar do que causa sofrimento, a ventania anunciada na falta. Tenho amor ao caminho que se estende às minhas frações. Velo por suspiros – que partir é próprio deles.
Despeço-me feito um cálice de magnólias pueris. Ao longo da praia geme a garça, algo que lembra o escárnio, um apelo com retalhos de Salomão e mãos de Pilatos. Não há retorno do que se gruda na ancoração, espaço ingrato afundando as marcas do rosto, num fazer crer que há horas sem cor. Beijam-se as agitações supremas das marés. O aspecto turvo de infinitas lonjuras dá-me avisos. Eu passeio nas tocas rochosas e suas espontâneas explosões que são outro início dessa captura imensa. Bamboleios banhados de beleza. Sou essencial para despertar em ti a felicidade. Ama-me”.
O Amado retorna. Com a brevidade dos falcões.
“Ouvi que me chamavas. Quero acolher o teu eco Maria. Vem comigo”.
Forma-se um dueto inidentificável. Há música. Há livros para pontuar. Águas com sede. E sedes comungadas.
“Um rebordar sucessivo nos tatua e nos enfaixa numa eterna juventude, tornando-nos senhores de um intervalo em que tudo se oferta sem o peso das conveniências. Somos os cúmplices afagos que nos estreitam nas lentas emoções a satisfação irrepresentável, o sorriso ancho. Críamos essa ambientação bilateral e incoercível. Confiamos no que traz o dia seguinte, que, afinal, apresenta-se, paulatinamente, posterior a nós. A complacência absorve-nos como se tudo nos pertencesse. O sulco retrátil do erro limita o curto alcance dos membros como se estivéssemos no curso imediato de uma catástrofe – um estampido. Nada compreendemos desses instantes desatados. Nada sabemos da evasão ou da perda, das angústias que nos atravessam até que saibamos dessa leveza que é superá-las. Da estática fotografia sem vestígios nem desaparecimentos. De quanto a existência nos empresta seu máximo aplauso para transportarmo-nos sem fugas. Eu e tu Maria. Amo-te”.
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