Som
Esquecera há quanto ocultara na
falta de tempo as leveduras do pó e seus milhões de ouvidos. Abriu o
compartimento de onde viriam as notas. Um clique. Debussy. Massenet. Guardava o
som na memória que esquecia títulos, composições. Só a melodia a vagar o
sentido que não oblitera. A leitura disforme e veloz como as mudanças
tecnológicas. A fome por som continuaria somente até a segunda idéia navegar a
distância da aproximação, portas presentes.
Meditação para Thais e Clair de Lune. Viu partituras. Ouviu piano, violino.
E segregou-se no retrato de um homem que possivelmente teria amado.
Em cruz ilhada
O palco era composto de quase
nada. Dois bumbos, um violão, um
órgão eletrônico e um cantor.
Nunca se soube a cor da face ou o contorno dos olhos da companheira que não o
acompanhava – uma dócil utilidade afeita a jamais passar das frestas. Obra do
cantor ou do conformismo de um destino, de cuja voz e sorriso pendiam seus
cabelos desprotegidos, a sua boca delineada pelos murros da percussão. Enquanto
a platéia, dividida e surda, aplaudia num quase silêncio a expressão mezzo-soprano, nascia mais uma heroína
morta.
Ambição
O corredor da sala ficaria com o
azul rosado, o quadro das embarcações. Para o quarto distante e agora
mais feliz levaria as tulipas aquáticas que antes eram da sala. Na onda
embranquecida pela violência do mar já se haviam dizimado os motivos do choro.
O coro de lamentos sumira no lume da primeira embarcação – máscaras e
caracóis vestidos na véspera. O vazio prenhe de elipses entre decisão e
ardor, ascendia num horizonte lívido de silêncios sem voz. Quisera correr e
agarrar-se aos remos com os braços fortes de outrora. Quisera haver ainda sais
para remar a vontade de parar.
Opulência
Era uma mina de diamantes.
Ganharia quem chegasse primeiro. A preciosidade pertence aos bem lapidados, e
só lapida com perfeição quem ousa conhecer o ruído das coisas. Pedra a pedra
fora buscada como se estivesse próxima. Daquele diamantário viria a lembrança
tão árdua de guardar quanto era rija a certeza de ser um tesouro só seu. Tentou
em vão atinar o caminho de volta para o rio. O de antes. O da inundação que
espelhava dentro d’alma, continuamente, bruxuleando em aquiescências fugidias.
Tão similar às jóias dormidas por fora da sua insônia – à fração de censura que
se permitia.
Debrum
Revestia-se humílima no breu da
razão onde esmigalhara vertigens irresolutas, esmiuçada no equilíbrio de uma
desordem no fio dos lábios exultando um ontem mínimo e indispensável à
perfeição do hoje, hígido, servil. Estremeceu a voz numa hiperbólica vigia “ah
se não fosse se não viesse se parasse o que possui dores”. Via no branco
espalmado apenas a liberdade feita de algemas. “E esse céu que se vai tecendo
num fulcro de impossível”. A fadiga solúvel, uma fragrância irrecusável de
alecrim e calêndulas – um gesto súdito a reveste derramando-lhe um cetim
consútil – sua noite de pêssegos.
Eco lógico
O peso do elo pode não ser um pesadelo. Na urgência que tem
para que o tempo demore já não demora nem retorna à raiz a árvore que cai –
apenas o corte finge que o cinge quase esquecido do seu gosto de nozes. Como
uma película de lagos entre os braços tinha para si a modorra que movia. Sequer
existia. Rodava nas horas que imaginava. Ramagens. O cansaço não adormecia nem
o dormir acordava. Uma angústia exausta não aceita ordens; quer exaurir e o faz
tombando de forma macia, sem a tristeza de não dar arborescência ao próprio
reflexo.
Açucena
Uma forma de driblar a solidão e
derreter as coisas que fermentam, erroneamente refreadas – deixar um pensamento
para depois é correr o risco de perde-lo – já não ousa correr riscos nem deixar
de correr porque o tempo tem pressa. Aprende a falar sozinha para não
desaprender a falar, perde o apetite na proporção que lhe cresce o pássaro do peito
entre roupas sujas e ninhos limpos. Quer olhar coisas onde coisas não há para
estreitar ...caça às escuras, entre simbioses e moedores de letras, algo que
aproxime a distância entre os abraços. Do vôo suprimido de asas vê o vácuo,
bebe o céu. Seu sim.
Sadhu
Ao optar por não-dizeres guardava
surdamente a dor que os substituiria. A vibração foi demasiado contundente. O
dia que se seguiu era como outro qualquer – caminhava entre nuvens, numa
construção solitariamente muda, evitando o esquecimento escaldante que parecia
querer queimar tudo o que estava vivo. Quis salvar os olhos. Há tempo as ruas
não imitavam seus movimentos. Tudo vive, ainda que pereça. Como ontem. Quando
mesmo entre um cárcere e outro, ao entender o sentido de ser só sem ser
solitário, não deixou de escapulir, magnanimamente iluminado.
Oitenta-e-Oito
Do vôo entenderá quem não é
alado? Magister dexit. Alimentava-se dos frutos desprezados pelas
árvores. O número circunscrito nas asas brilhava mais quando pressentia
a implacável caçada. O abdômen preso a um alfinete, as cores e a silhueta sem a
vivaz perfeição de antes. Pensada inesgotável e sem memória a Diaetheria
Clymena seria capaz de esquecer os que lhe
haviam provocado a quase extinção em troca de haverem eternizado a forma com
que os fez sentir – porque adorava a luz e jamais tinha certeza se
testemunharia a próxima alvorada.
O Alienista
A perspicácia o faz ainda re-ver algumas provas. É agradável
o deslindar dos pensamentos à sua frente. Fragilmente forte não reagiu quando
bateu a chave com força e fez cair a porta. Talvez se assemelhasse àquela
fechadura muda que lhe abriu o chão para vê-lo enrijecer o esquecimento de
todas as coisas que por insegurança o fizeram útil. Um exclusivista ligou para
ser ouvido. Quando quis fazer-se ouvir “só um minuto” não teve garras – seus
ouvidos eram os erros da casa – os labirintos de Borges.
Ver-te Vertente
A página não é suficiente para
que se firmem os olhares. Todos se fecham diante do sofrimento. Não entendo
porque não possuo a mesma cegueira. Não sei onde sou eu nas coisas que não
vêem. Para que presságio ou desentendimento irá essa compreensão que não sinto?
Exerço uma nota de brilho. Nenhum papel. Cada partícula de mim se alimenta
dessa possibilidade de sonhos, talvez soprados em realidades atemporais
onde prevaleça algum retalho esmaecido e sem orgulho, quando serei o fragor
composto por quem já ousou sem a consciência do medo.
O menor de todos
Eu visto outra pele sem ser a minha alma uma pele que visto.
Não me escondo senão por uma timidez ou um desejo de ser o nome obtuso
estreitando livremente a ameaça de mostrar-me. Como se nunca sucumbisse a luz
errante da sombra. A confiança erra ao não ter compaixão. Vale a pena sonhar,
me antever quase totalmente arrependida nessa terra
estranha que se tornou a minha figura. Minhas
fotografias são essas palavras, e algumas palavras são sapos. Não há sentidos feios, apenas almas. Não há palavras feias, apenas sentidos. Papel de bala.
Órion
A pretensa ilusão de que as
coisas ao redor deixam ou continuam a existir, apesar de tudo, sobre tudo. Crer
no espelho quanto é possível a crença em si mesmo – não é outra a imagem
refletida – o cognitivo compele à saciedade, (ou pelo menos deveria), para
melhorá-la, sem objetar modificá-la. Quanto há que acobertar ao testemunhar
autor e obra não sendo senão outros, sós, ungidos para girar, deambulando entre
um e outro floco visionário, presos ao mesmo cordão, desprendidos e naturais,
mergulhando onde nenhum tesouro parece estar aguardando-os.
Mata
Num oceano de folhares o néctar vive com o trivial cerne da
comoção. Quem nunca teve uma grande ferida para saciar? Toma a sua cicatriz
aberta e desperta do que não é, em absoluto, um pesadelo, um caule impoluto.
Uma foice cruza o último solstício tropeçando sem saber se ainda serve aos
admiradores da resistência. "Melhor se não vivas" diria a teimosia
peregrina ao luto das ramarias. Talvez um imbecil soubesse de matemática quanto
sabe a sorte do semeador. “Não julgariam se me vivessem; sou uma eterna grade,
herdeira sentenciada pela casca que me veste como quem despe”.
Enlace
Houve um estranho momento em que cheguei antes do nada. Era
um perigoso fragor de manhãs de circuitos únicos, suavizados. O indelicado
sabor da loucura ia-se distante. Sem deixar impressões ou memórias dúbias.
Dobrei-me diante do luar que balbuciava distante enquanto tudo ali estava. Ou
restava, em janelas obscuras e desregradas cortinas. Vi-me a balançar em
pequenas redes de nuvens, claras como o sol. Surpreendi o poema
a fazer-se rosto, dourado, irresignável. Mostrando-me onde residia o que
faltava.
Pilha
Ando apática de sentimentos.
Talvez porque experimento ser mais feliz do que sempre fui, mais inerte do que
julgava. Não folhei o volume que menti que leria. Nem me interessei por quem o
tivesse escrito. Perdi-me no seio das folhas dos filhos renegados. Óbolos
recolhidos humildemente em seixos e areias antes mares com restolhos de ostras
e mariscos. Madrepérolas inquisitivas se tornaram adornos no meu corpo esquivo.
Minhas primaveras parecem pobres para resgatar o livro de névoa que voa lá
fora. Então digo à velhice das horas diminutas salinas vindas de dentro, marés
vertidas em silêncio.
Ductilidade
No meio do bosque, drusas e
ametistas ainda se decidiam por derreter a escuridão. Como seus olhos
de cristal quase verdes, quase mares. Comprou um anel de três pedras
e o colocou no dedo médio. O seu vestido rodado marcado na cintura, decote
discreto, da mesma cor de ágata. Dançou mil vezes no tapete das deusas, sequer
sentia a leveza do corpo entregue à cegueira da música. A vertigem do desejo
caia-lhe do rosto. Não erradicaria sua herança de pedras. Devolveu um sorriso
sem cumplicidade ou promessas. Não gostava dos ocasos cor de areia.
Alvo
Teve certeza que o egoísmo – sentimento tão absurdo e
horrendo – poderia vingar-lhe sobrevivência. Relutou. “Vou pensar em mim”. O inferno são os outros – esquecera, é
mais fácil lembrar do sentido do que do autor que o desencadeou – Sartre teve a
felicidade de aguçar em três palavras uma grande verdade humana. Talvez um
livro secreto o tivesse incumbido dessa fagulha de eternidade da qual não havia
como não concordar, exceto pela ínfima razão de que o céu existe porque o
inferno existe. O que cabia, talvez fosse aferir com terrível exatidão o
caminho do meio sem ser um Einstein ou um Da Vinci.
Dom
Hoje o normal virou-se e disse um
olá. Na contramão o inconfesso quis aproximar-se e temperar o sortilégio mental
da sua preguiça. Soube apenas do portão aberto ao toque inseguro, agilmente
determinado. Ao chegar não perscrutou perguntas, preocupações ou suspeitas.
Depois da pausa o recomeço; é assim sempre, ou quase sempre. De definitivo só o
presente com o que há de definitivo. Interrompe o silêncio que agora se instala
para outra pausa igualmente silenciosa. A beleza inaugura o que a contempla
como um menino recém acordado. Deixa-se ficar – em nome da arte quanto em nome
de Deus.
Publicados também em setembro 2013: http://www.germinaliteratura.com.br/2013/tere_tavares.htm