sábado, 11 de outubro de 2014

Carta sem distinatário

Teatro



Carta sem destinatário

A alma se liquefaz com sua força imensa; nem por isso menos insegura. Animou-se por estar diante de um incalculável delírio. Inconsequente, porém lícito. Não se fixaria num prumo de onde sobreviessem más idéias.

As nuvens dançavam por entre as frases que encontrava com a benevolência contínua do calor. Dissoluto, passou por uma livraria. Sem tempo para entrar observou à distância as preguiçosas pilhas de livros suspirando na vitrine. Imaginou a última indolência no folhear de uma obra. “A alma pergunta e o livro fala.” Os motivos eram silêncios ensurdecidos.

“Tão incomunicável é o pensamento mesmo entre coisas muito próximas” – expressou-lhe algo notadamente melancólico, mas de sorriso tão amável quanto às sementes mais fecundas. “Às vezes uma mentira salvadora é mais nobre que uma impiedosa verdade.” Fechou-se junto a essa dubiedade, numa política suntuosamente fiel.

Assentiu a um aceno apenas por polidez. Sentia-se pouco à vontade diante de estranhos. Era de seu único interesse o que sentia ou imaginava sentir. “A dúvida não se ampara em acasos.”

Voltou a refletir sobre os aspectos daquele repentino remorso – única herança obtida entre um e outro chiste daquele dia onde muitas promessas se quebraram – mais fugaz que um instante e talvez por isso com estruturas tão indeléveis, como o sal angustiado do vazio que se seguiria, ou a veemência de que não ressuscitasse nada – rugas de uma jornada irrepartível de menos de uma hora. O tempo sabe ser cruelmente profético e inteligentemente arrebatador.

Adorava estar solto, tão inóspita era a verdade onde se dispunha a caber. Como se nas lágrimas atenuasse a secura da voz, madrugava em reminiscências bondosas, refugiando-se na possibilidade, ainda que remota, de mais algumas revelações felizes. 

Do livro "Entre as Águas" 2011 by Tere Tavares

2 comentários:

João Esteves disse...

Terê, querida amiga, que prazer experimento em fazer-me um destinatário deste texto tão denso ao relê-lo. Já o conhecia, mas ele pareceu encher-se de novos significados agora, talvez despercebidos quando da primeira leitura, de qualquer forma remetendo ao nome deste blog amigo que há tanto não visito, vindo de lá do face. Parabéns, pelo sempre estiloso estilo de que ~sempre fui um apreciador, como você certamente sabe.

Tere Tavares disse...

Querido amigo João Esteves, feliz com tua presença e comentário. Creia, é um orgulho tê-lo como leitor. Sempre.
Sei-te sim, porque mo dizes.
Um grande abraço. Obrigada!