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domingo, 22 de dezembro de 2013

Odara

Odara

Matura-se em fases tão irresignáveis quanto é certa a sutileza das mudanças, sendo invariavelmente o resultado do que imagina sem evidenciar o que aparenta ao olhar alheio – um desabafo pretérito e inescrutável.

Às vezes pensa em enviar-lhe o último sentimento que o navegou, o passeio que reescrevera no ontem. Lembra-se das coisas que, quase inconfessavelmente, lhe confessou. Conhece-a talvez mais profundo do que alguém que tenha convivido consigo, entretanto, é tão triste perceber que jamais lhe dirá que um dia a percorreu, quanto mais que esteve tão próximo do seu amor, que foi lancinante a voz da razão a retorná-lo, quiçá, a um porto seguro – aprendera com o tempo e guarda isso para sempre – é grato por cada palavra que não trocaram, por cada devaneio que, mesmo agora, ao rebuliço de lembrar-lhe o sorriso, se avizinha dele, na mente, na pele.

No alto do seu quinhão de vida nunca perdeu a importância, como se reconhecesse entre todos os anônimos uma alma similar à dele, à curiosidade, à inquietude que, mesmo madura, ainda o habita – e como reconheceria a si mesmo no que desejava se assim não fosse? Fora tão pudico, fora como é, tanta a demora, a fugacidade de estar naquele lugar, naquele dorso irresponsável. E se pergunta sem encontrar resposta ou repelindo-a: porque algo tão breve fora suficiente para impregnar-lhe o resto de todos os seus dias?

Ainda não conhece toda a química com que foi feito. Fora do seu espaço há outros espaços que o incitam indefinidamente à busca. Como não identificar-se no que explora, como sendo ele próprio a descobrir-se? Do contrário, como nasceriam, quanto se tatuariam de si os ocasos do mundo?
Nas linhas cujo espelho inevitavelmente o reflete, não é possível refletir – suspenso como um ponto hesita entre ser sensato ou enlouquecer. Percebe que as margens jamais se encontram e, talvez por isso, permaneçam inseparáveis singrando, indeléveis, o placentário espaço de onde tudo surge.

Com deuses bons e maus a lhe agarrarem o pensamento confia nas palavras como alguma coisa que não degenera. “Mesmo que o amanhã não surja não será por que o mataste, mas por que terás morrido antes que ele chegasse”.

Ouve de um Sadhu que a verdade não supera a busca pela verdade. E que belas sílabas sibilam por entre os minutos esculpidos de sua presença. Vê-se como um anjo azul que se recusa a cair, um velho cancioneiro que ainda é juventude.




Um reino entre as formas

Uma sinceridade fingida dava palavras ao silêncio – alimentando as que, pela manhã, despertavam como heroínas sorridentes, sem o lamento da derrota ou o delírio de imaginá-la, para redimirem-se ao final na arena da linguagem, umedecidas, como se fossem compactadas ao corpo em correntezas de um curso sem som, comovendo as raízes das horas que sucumbiam aos enigmas, alimentadas pela clorofila das nervuras folhares – a inevitabilidade.

Os olhos de um verde lavado, os cabelos cacheados a colorir-lhe a beleza com as nuances da terra. Sua impaciência era semelhante à felicidade. O entardecer lento adormecia na areia... as pétalas de espuma perfumando o mar, feito de recifes e algas, deixando no seu rosto de olhar celeste o calor de uma selvagem ternura, como se, entre as ondas, caminhasse seu coração de conchas saltitantes, esverdeado e profundo sob as estrelas do céu.

Em tudo permanecia sua invisível presença, os fabulosos homens do mar, homens do sol, completariam o entardecer com sua tez de cobre e seus músculos de música distantes como o dia, as rochas de pele corroídas pela luz. Sempre adivinhava quando chegavam, amiúde, com agitada conformidade os esperava.
O terror afogava-lhe os gemidos como uma pequena vaga entre os barcos escuros, uma razão sem memória na sua inesquecível insistência de loucura. “Deus, somos uma lâmina de pó no pendor de tuas virtudes”. O rosto banhado de recordações parecia não ter idade como o perfume frio das laranjas. As folhas acolchoadas de tíbia neblina preenchiam o resto da tarde dourada.

Descansava no jardim com seu destino sem confidências ou favores, o assombro de texturas singulares, a tristeza de matriz invariável sobre a névoa espessa das serras num trajeto carregado de vazio e sombras, resplandecia, lama sólida de uma luz agressiva, nascendo num diamante rubro para iluminar outra e outra noite.

As coisas que ao mesmo tempo se alimentam de vida e morte não duram indefinidamente. No hálito frio da madrugada extasiava-se numa curta eternidade. “Todos os rostos são muitos rostos”. Uma espécie inconsciente de felicidade elemental, um estado ao mesmo tempo estático e indiferente que anula as recordações e impede ao homem trabalhado insistentemente pela terra, de confortar-se com ela, apoiado no dorso das argilas.

A secreta umidade das lágrimas deixava-lhe a alma caída junto aos pés, carícias neutralizadas pelo hábito, linhas indecisas, flutuantes, ansiedades pausadas acenando mudanças rodeadas pelo fulgor inolvidável das sementes do luar, como um olhar de criança cega que tivesse visto uma película sem tê-la visto – só os detalhes devastadoramente ternos importavam. A acha do tempo, a respiração das árvores acabaria numa cinza ligeira e rosada. Nuvens de fumo com a mesma e completa inexatidão.

Contos Publicados na Antologia  EscritArtes 
 "A Arte Pela Escrita IV` (2011),  Editora Mosaico de Palavras- Portugal