quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Um resquício ou as folhas clandestinas


Um resquício ou as folhas clandestinas

Primeira carta: “Os dias se levantam com um gosto único de dias. Preferia um gosto que não doesse nem ferisse. Ando a esmo o mesmo e estranho caminho no raso em que se demora o desmando de ir. Os pés de ipê já floriram, a primavera se coaduna com pássaros de imprecisos trinados. O amarelo no fundo do meu olho é apenas o sol habituado a expulsar a marca de um presente que embora rejeite não posso modificar. Fecho a névoa, a que abrirá o coração cioso e distante que acalenta tantos mundos – acima da fragilidade há os temores findos no segundo em que encontro a inexprimível liberdade de sorrir o conforto das horas.”

Há como enfrentar os sentidos sem cortá-los ao meio? Se a imediata compreensão é possível também é provável refratar um pensamento com outro. Nunca vi a voz que andava de sapatos novos. Não a conheço. Mas é como se a conhecesse. Alguém a descreveu numa outra carta que recebi: “...reside num país distante, é humilde e rica, faz teatro, e, embora às vezes pareça beirar à arrogância, tem como principal característica o rosto angelical e a alegria contagiante.” Escreveu ainda – e não fosse isso eu estaria menos confusa – num Post Scriptum: “consigo meus próprios sapatos e, pelo prazer de andar descalça, há sempre novos pares a minha espera.”

Querida Clarice, em sua homenagem a luz que chora a hora da estrela aprende a viver sua eternidade e a descoberta do mundo se debruça em saber como nascem as estrelas. A bela e a fera ensaiam mais um sopro de vida. A vida íntima de Laura (a mulher que matou os peixes) é quase de verdade, de corpo inteiro. Quando a via crucis do corpo lhe segrega sussurrando “onde estiveste esta noite” a sua felicidade ou liberdade clandestina transforma-se em água viva. Seu espírito soma-se a uma aprendizagem inovadora – o livro dos prazeres – como se desfrutasse continuamente de uma legião estrangeira, ponderando sobre a maçã no escuro, o lustre e os laços de família. Não é de estranhar que perto do seu coração selvagem sobreviva apenas o mistério pensante da paixão. Com atenção: Lispector.


Texto do Livro Entre as Águas by Tere Tavares
Foto by Tere Tavares

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