segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Enfeitador de paredes


*Resignação... que triste palavra! E, no entanto, é o único refúgio que fica*. Beethoven


Escondeu a inspiração sobre a túnica – sua musa, impossível de expulsar, tampouco se fazia adormecer. Caaba (nunca conseguira descobrir o motivo de haver herdado esse nome) não era, em absoluto, alguém que almejasse atingir “a neutralidade serena imparcial e objetiva”. Tampouco abdicava dos reflexos do espírito mesmo que não cessassem de serem difíceis.

No seu insólito julgamento, o surreal seria sempre o que ultrapassava o real sem desprezá-lo. Podia viver bem em qualquer parte, uma vez que não exigia muito do mundo.

Estava quase sempre cercado de sorrisos de papel, de amigos invisíveis, alguns bons, outros nem tanto, e outros ainda irremediavelmente distantes. Deixava-se prender sem ligar-se a ninguém.

Em suas viagens inenarráveis refletia sobre como deveria exercitar o esquecimento. Com o tempo percebeu não haver mais nada a ser esquecido. Desenvolvera uma simpatia indiferente, uma gentileza polida. Nunca superficial, hesitante, ou com ausência de pensamento. No olhar lânguido e suave encerrava uma atormentada bondade. Não a compreendia completamente embora lhe parecesse clara.

Procurava guardar o melhor possível de suas experiências, mesmo adivinhando o precipício final em que mergulharia o fruto do que, com toda dedicação, criava para a humanidade. Ter um trabalho que socorresse a todos, eis o mais nobre, o mais fácil, útil, e saudável a se fazer. Para a maioria das pessoas o que sobra da arte resulta em futilidades e desperdício de energia.

Sou um mero enfeitador de paredes” disse para si mesmo tendo a exata sensação de que em breve, muito em breve, seria ainda mais abandonado.

Chegou ao pequeno cômodo – era quase o nu descendo a escada – removeu os elos dourados do seu sagrado retiro. Pincéis de olhares envelhecidos, bisnagas de tinta misturadas à preguiça dos estojos, óleo de linhaça, solvente, giz. Como lhe era agradável a desordem olente dos materiais que remexia sempre com demorado encantamento.

Alguns quadros inacabados pareciam vigiar-lhe os mínimos movimentos. O pó lamentava a mobilidade do instante. Na mente de Caaba saltitavam todos os esboços que, por uma anônima metafísica, ainda não pudera exprimir. A exposição. O dia e hora marcados. “Que massacre trabalhar sob encomenda. Quem me dera ter à mão algo como “os comedores de batatas”. Monologava movendo-se na engenhosa rudez das superfícies – as paredes sabiam implorar como ninguém.

Lançaria mão do improviso para preencher o que não era possível abandonar.

Imaginando os céus que não existem, perambulou entre dois últimos presentes brancos – como talvez fosse quando se obrigava involuntariamente à ausência das cores.

Caaba ressuscitou um pouco a decisão de continuar vivendo contando com o que era: a alegria dos raros, o trevo de quatro folhas frágeis, o enfeitador de paredes. Ninguém é mais capaz que uma estrela que baixe do espaço sem querer. Não soube como evitar as lágrimas. Beijou a dor, a antiga construtora de sonhos – suas obras: únicos seres no mundo a esperá-lo.

Do livro "Entre as Águas".
Texto publicado no Cronópios: http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=5258
Foto: da autora 

8 comentários:

Salete Cardozo Cochinsky disse...

Querida Tere
Brilhante! As metáforas são perfeitas. Para começar um novo ano é um sublime presente.
Risos e beijo
Sim, como compartilho as idéias desse texto.
Parabéns por essa habilidade. Brindo contigo.

. intemporal . disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
manuela baptista disse...

para uma enfeitadora de paredes, tenha lá o nome que tiver

um abraço!

manuela

Mª João C.Martins disse...

Também nós, cada um de nós, se transforma num enfeitador de paredes ao longo da vida. Mesclamos sombras e claridades, tonalidades várias com que pintamos o branco imaculado da casa onde nascemos. Um dia, precisaremos de todos os céus, de todas as árvores e todos os contrastes que criámos, para manter erguidos os sonhos. Nesse dia perceberemos, enfim, a arte que sempre esteve ao nosso alcance, na ponta dos nossos dedos, na vida que já vivemos.

Um beijinho grande, Tere.
Obrigada sempre, pela tua presença e pelo teu carinho.

☆Lu Cavichioli disse...

Tere, tua prosa é impecável e confesso estática: escravizou-me!Cativa então, pus-me a reler e a beleza saltou da tela, colorindo tudo em volta.

OBs: os suspiros, aqueles (sem creme rs), agora recheados estão!

beijos
saudade :)

Lu C.

antes blog do que nunca! disse...

Tere...minha querida Tere,

cores e palavras, tuas companheiras.

E que amigas inseparáveis são, numa trilogia que segue rumo ao eterno da arte.

Linda. Meus parabéns por tamanha beleza de texto.

1 Bj*
Luísa

Ricardo e Regina Calmon disse...

UMA PINTURA,TEU TEXTO,MADRINHA INESQUECÍVEL NOSSA!

BZUZ DO CASAL

REGINA E RICARDO

Ricardo e Regina Calmon disse...

passamos para te reler e sentir!

Ricardo e Regina

viva la vie