sábado, 30 de novembro de 2024

Resenha do Livro Luz - Contos - 2024 - De Tere Tavares


Honrada com essa análise do livro Luz, (contos, edição da autora- 2024),  

feita pela Escritora e Dra. Alexandra Vieira de Almeida (UERJ) 

publico-a em sua íntegra. 

Trazendo a inofrmação de que, essa resenha foi publicada, também, 

pela Revista Caliban de Porutgal, PT.


Para acesso segue o link:
https://revistacaliban.net/a-luz-multifacetada-das-palavras-em-tere-tavares-c7740f3cd551

 


A luz multifacetada das palavras em Tere Tavares

 

Por Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)

 

As palavras, no mais recente livro de contos de Tere Tavares, Luz (Ed. do autor, 2024), conduzem o leitor pelos vários matizes da luminescência, naquilo que elas podem revelar em pleno sol de translúcidos espelhos pelo viés da objetividade, das reflexões filosóficas e máximas que concretizam o poder do real e sua relação com a mente humana, projetando, por sua vez, as sombras que tecem o ocultamento próprio do fazer literário em seu reino de subjetividades em moto-contínuo. Entre a luz mais clara da manhã à luz bruxuleante, que oscila, deixando, em seu rastro, ora densas camadas ora faíscas tênues; a escritora de Cascavel, também artista visual, costura uma malha textual plena de signos vários, não traduzindo uma unidade temática em torno dessa mesma luz, mas dando ensejo à pluralidade de seus tons, em que a solidão, o diálogo entre os saberes, a fragilidade, a morte, a velhice, o amor, entre outros, quebram a monotonia das trivialidades mais óbvias. Em sua obra, não há obviedades, como se lê na epígrafe de Victor Hugo: “Aquilo que causa noite dentro de nós também pode deixar estrelas”.

Dois textos críticos belíssimos e profundos teorizam sobre sua escrita, o prefácio de Amanda Kristensen e o posfácio de Giovanni Francomacaro. Amanda afirma que Tere Tavares em sua obra “articula conto, crônica e aforismo”. Realmente, suas intensas interrogações sobre a vida, entremeadas como linhas ígneas no tecido das histórias, perfazem um processo complexo e multifacetado em que a luz das palavras acessa o âmago da existência. Ao citar uma frase de Flaubert, com relação ao romance Madame Bovary, Giovanni diz que “cada história pode ser entendida como uma biografia em que o autor brinca de esconde-esconde consigo mesmo”. Essa é a verdadeira máscara teatral que Tere Tavares utiliza para a procura do leitor por sua mais explícita face.

No conto de abertura, “A alma não pede, exige”, a autora faz um diálogo fecundo entre Ciência e Natureza, em que ficcionaliza as reflexões de outrem em suas próprias divagações, não como um espelho, mas como um alinhavo de novas linhas com sua densidade literária, novos sentidos aos conhecimentos científicos através de suas fórmulas ficcionais. E a escolha do nome Albert, citado no conto não é gratuita, associando-se à geometria não euclidiana, que embasou estudos de Einstein. Percebam a tessitura argumentativa neste conto: “As interrogações expandem a realidade”. Para depois, explodir em movimento cuja poesia e o dom artístico servem não como simples complemento, mas como componente essencial dessa realidade que se alarga: “Às vezes, não ver o mundo no lugar de vê-lo é uma arte, é não habitar o óbvio, é fugir da vulgaridade sem mergulhos ou voos fatais”. Discute, também, sobre temas atuais, como a inteligência artificial, citando máximas instigantes como contraponto.

Há poesia e lirismo em suas frases, aliando Ciência e Literariedade. Uma outra voz entretece a mente de Albert, fazendo dele um cientista-poeta, assim como existiram filósofos-poetas, como os pré-socráticos. No final, há uma longa explanação poético-filosófico-científica com uma iluminação explosiva de pura beleza imagética e metafórica. Discute sobre a relatividade de tudo, a provisoriedade, numa polissemia de vozes, em que a ficcionista mesma expõe o narrador. Utilizando frases longas e de efeito, por vezes, nos impacta com uma afirmação curta, mesclando vários registros linguísticos e de estilo. O ritmo tem sonoridade plástica, construindo um quadro completo diante de nós, quando rima vã com divã. Suas palavras se organizam e se bifurcam numa composição rítmica que toca profundamente as avenidas do real tornado linguagem.

Em “A chuva pousa as pálpebras”, temos a forte presença da relação entre os elementos e suas combinações. A natureza entra em contato com a sensibilidade da artista. Há frases potentes, em que a natureza vai aderindo a ela – a linguagem –, estabelecendo uma ponte entre a natura e a cultura: “A rosa sente a chuva. Vou-me percutida em átimos de palavras soltas, palavras amorfas [amá-las é amar a vida]”. Há luminescência, a luz de sua escrita ilumina a compreensão do texto, e uma fenda, uma rachadura dão lugar à imaginação. Também encontramos, em suas palavras, a reflexão sobre a arte de criar, num processo metalinguístico crescente como o silêncio e o vazio, o antes da criação, de onde provêm a linguagem e o dom do ato de inventar os símbolos mais plenos de luz e sombras, que se projetam nos papéis brancos da literatura: “O dorso translúcido da mudez suspende-se em fragmentos sígnicos e paradoxais”.

O eu, também, busca encontrar o outro para dar sentido à sua vida, ele, o leitor que pode preencher esse vazio textual feito de ardência, fulgurações e efervescência. Clarice Lispector era mestra nos seus questionamentos sobre o eu, num diálogo constante consigo mesma, o autoconhecimento, levando a hipóteses sobre a existência. Com seus monólogos interiores e fluxos de consciência, Tere Tavares apresenta uma escrita única e singular, mesmo que faça um tributo a uma tradição literária e de conhecimentos diversos, em que a escrita é um diálogo intenso e constante com a vida: “Sendo eu sem mim, ainda sou eu”, Ou ainda: “Para entender a minha escrita, há que conhecer-me: a grandiosidade de uma obra se iguala à tragédia do seu autor”. Luz, de Tavares, é rico em metáforas e imagens. Metáforas itinerantes que viajam pelos percursos da escrita, metamorfoseando-se e diferenciando-se o tempo todo, utilizando-se de máscaras imaginárias que deixam os vãos para a voz sair como um apelo para a essência do ser e, ao mesmo tempo, como sua aparência, como o corpo ficcional do texto. Tere Tavares se vale de metáforas de um lirismo perfeito e exuberante, como em: “uma ovelha sem nome, órfã de lã”. É a própria reflexão sobre o papel da escrita, que é, na verdade, um questionamento sobre o eu, o ser, acerca de temáticas universais como o amor, esse pássaro “abstrato” que nos leva à transcendência, não tendo uma “explicação”.

Suas interrogações se estendem para o campo dos mitos, da cultura, da ciência, da psicanálise e, principalmente, da literatura e das artes em geral, circulando por várias vias dançarinas do pensar e estar no mundo. A relação ser/mundo é uma incógnita que reflete a própria dimensão literária que oculta por entrelinhas movediças os arcanos do real. Sua interrogação interior é uma viagem para dentro de si, é um itinerário pelos mapas da linguagem, pelos fios visíveis e invisíveis da escrita e do eu: “Eu, que nunca nasci completa. Eu, que sou um ser estranho e invisível a mim mesma”, num constante refletir sobre o ser e o pensar sobre o próprio texto. Suas frases são labirintos latentes que escondem o centro em sua potência linguística e cognitiva.

A metáfora da luz tem um significado mutante no seu livro, cujo título esconde os seus signos diversificados, ímpares e oscilantes, símbolo do próprio ato criativo, que mescla a luz e a escuridão, dando à luz, num parto aquoso e com forte dor, os seus textos ficcionais, uma luz que ilumina e ofusca, que atrai e causa as mais variadas sensações no outro, nos leitores ávidos por enigmas e deciframentos de hieróglifos textuais que invadem sua escritura enigmática nos mistérios do ler e do escrever.

No conto “Ensaio sobre o nada”, o leitor está diante de um ensaio sobre a vivência da dor. Com afirmações e máximas, Tere une, como é pleno em seu estilo, a linguagem objetiva e subjetiva, em que o filosófico se mistura ao mais lírico-poético numa espiral das horas, na qual o gosto saber-sabor da língua soletra o sensório das coisas e dos objetos, cujo percebimento do eu vem à tona em expressões que remetem àquele ruminar e mastigar as palavras com vagareza. O “rumor da língua” barthesiano se infiltra em seus poros, trazendo o gosto do prazer da linguagem, na qual o desprazer e o dissabor constituem a própria existência e resignação de ser escritor. Como o equilibrar de um ser vacilante na corda bamba da vida. Nesse conto, assim como em outros, há uma gradação entre o eu e as coisas, o eu e a palavra, o eu e o tu, o eu e o mundo, culminando no clímax da linguagem ficcional, cujo êxtase apreende o real do ser e do mundo: “Deveria eu que caminho pela imaterialidade ver mais? Sim, ele disse, e me deu a mão”. E com a perda da aura na modernidade, no seu viés benjaminiano, podemos ampliar aqui, na obra de Tere, para a contemporaneidade, aquela perda do mistério que há em tudo, num processo de obviedade que nossa sociedade busca: “A melhor forma de decifrar um mistério é desmistificá-lo”.

O eu e o tu são amantes, também, como num diálogo existencial e erótico ficcional.  A polissemia dos signos e a semântica da luz incendeiam corpos, sentimentos e pensamentos dos amantes, que se fragmentam e multiplicam nos seus espectros, trazendo o reflexo do humano para o literário como num jogo de espelhos, onde se miram e se buscam nos significados duplos do dia e da noite, em seu caminhar de oposições e segredos.

No final de cada conto, como este aqui, há uma síntese, o que confere um toque meteórico e monumental ao conto, como a maioria, curto: “A coragem de levantar os olhos para o horizonte e pensar está para poucos. O afeto é sempre superior às paixões”.

“O pássaro” faz um panorama sobre a fragilidade e como o pouso, as forças telúricas do mundo, pode adquirir o voo, mesmo que imaginário e celeste para os sonhos do escritor, esse pássaro que tem o corte das asas como dom de criar novas com o sangue das palavras. Numa revoada, Tere mede o voo e faz o pouso para alcançar as linhas fiáveis do texto, voar por entre as palavras é alcançar o cerne de sua escrita complexa e inerentemente poética. A pausa é o pouso do pássaro para descansar e refletir sobre suas asas plenas de ares linguísticos. É preciso planar e pousar para se deglutir e mascar as palavras, refletindo sobre o itinerário, a viagem aérea. O voo e o pouso da leitura com os olhos da acuidade ampla levam a interpretações mágicas que encantam a visão dos leitores. Esse pássaro aqui, no seu conto, terá um defeito de sua própria essência de ave, a falta das asas que lhe caberiam. O mundo animal é revelado com sua mãe-ave, sendo esse universo a própria metonímia do humano. A pequena grande história de um frágil pássaro e sua família, a imensa família que é a humanidade.

O pássaro passa por intempéries e sofrimentos, o fora e o externo lhe causam intensa dor: “friagens inclementes”, “terras dobradas” e “ventos álgidos”. Seu vocabulário, por vezes, rico e rebuscado e, por outro lado, de uma claridade profunda, remete às várias facetas da luz, que ora clarifica, ora projeta a sombra no seu ocultamento implícito. A potência do frágil, neste pássaro incomum, é “compensado pelo seu inquebrantável espírito”. O paralelismo dos reinos animal e humano, com sua força e fraqueza, aparece, por exemplo, quando se fala que o “ser” (animal – palavra aqui intercambiável com o humano), necessita de “calor”, “alimento” e “luz”, pois todos precisam de proteção e cuidado. O pássaro “não crescera com a suficiente nutrição”, o que, no futuro, trará sérias consequências. E ele atinge a maturidade. Assim este pássaro desafia a lógica, alcançando aquele espírito vago e imaginativo da poesia. De conteúdo existencial, seu conto é uma fábula contemporânea sobre a fragilidade do ser e seu estar no mundo.

As asas como sinônimo de vida, o voo e sua falta como finitude e angústia, revelam o amargo sentir deste pássaro que não procura a solidão como subterfúgio, formando uma família a quem dá amor e proteção, diferentemente da sua mãe: “Restou-lhe a cicatriz circunscrita no dorso, o desequilíbrio do corpo e a humilhante condição psíquica”. E continua: “A supressão da parte mais bela e importante de si mesmo o impediu de gozar a iridescência plena do céu”. Deixando de ser celeste para ser telúrico, fincando-se na terra com sua pássara e filhos, produz os voos mais poéticos através do seu dom de imaginar. Deixa sua essência principal para encontrar uma experiência coadjuvante que não corta suas asas imaginárias e metafísicas, o voo do sonho e da transcendência, pois, apesar de sua força atávica, sonha planos de voos cósmicos e suicidas. A latência do voo é a angústia da alma, que não se transforma num monstro horrendo e disforme, mas num ser compassivo e desejoso do melhor para a família.

No conto “Semântica ou a casa onde melhor me sinto”, temos referências heideggerianas já no título, pois o filósofo escreveu que “a linguagem é a morada do ser”. Tere Tavares parte do paradoxo do sentir como a mescla entre o riso e o choro no primeiro parágrafo do seu texto para tecer comentários sobre sua própria escrita, num círculo que produz sua chama cheia de lampejos brilhantes, entre a Teoria e a própria ação do narrar: “Escrevo com a languidez das mãos molhadas no luar dos retornos menos felizes, ao salmodiar da noite que se prenuncia afoita e tímida”. Dessa forma, a teoria da literatura sai dos compêndios e flana sobre suas palavras no escrever mesmo e todas as teorizações e complexidades que o literário requer.

Também encontramos o misticismo, com a presença de Deus, em que a subjetividade entra como seu interlocutor, indo do sagrado aos ritmos da natureza, essa produzindo o renascimento do ser por seus elementos, nos quais a natureza se camufla em linguagem. E a unidade se constrói pela pluralidade: “Sinto-me habitada por filhos de papel e tinta...” e que “sou os livros, as letras, os leitores, os injustiçados, a resistência”. Aqui, parte do mais universal e plural para algo mais específico e particular que é nossa sociedade com seus reveses. Nessa ambiguidade entre a Literatura e o Social, Tere cria uma simbiose poderosa: “Há arte somente quando há humanidade”. O real e o ficcional se unem para criarem um centauro duplo, metade arte animal e metade corpo humano, pois a literatura é linguagem inaugural, que tem a origem no ser humano, adentrando o reino das palavras no seu terreno ainda virgem, pronto a ser explorado por leitores bravios.

Em “Um rosto à submissão da linguagem”, as palavras multifacetadas trazem a vida, possibilitam o encontro com o outro e com o mundo: “Precisa ultrapassar a si mesmo como se um corpo outro o submetesse à estranheza alheia para sentir-se no cais da linguagem e, nela, reconhecer-se estonteantemente febril e vivaz”. Há algo de primordial e originário que identifica o livro e o ser num mesmo deslumbramento, um relicário. O amor à vida que nos enaltece. Ela trabalha também com reflexões sobre a velhice, o nascer, o amadurecer e o morrer e com uma passagem que remete como um eco sonoro e rítmico de um poema de Cecília Meireles. Tere escreve: “Não posso dizer que estou triste nem que estou feliz”. O minimalismo individual como potência do eu maior, do ser humano em toda sua grandiosidade, leva o corpo definhando, com a aproximação da grande viagem, a uma alma intacta.

Após sessenta contos muito bem elaborados e profundos como o corte de uma espada de samurai, o livro se encerra com o conto número sessenta e um, “Fragmentos de luz”, na verdade, uma colcha produzida por breves luzes intensas e tensas, uma espécie de conjunto de microcontos e minicontos, que são minutos de reflexão, pérolas mergulhadas no mar da poesia, em ondas criadas pelos leitores com a avidez de atingir as areias da vida em seus múltiplos temas: sabedoria, desigualdade, poluição, solidão, perdão, o ser, autoconhecimento, sagrado, arte e erotismo. Como nos fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes, Tere tece reflexões em cada parágrafo sobre amor,  literatura e uma variedade de outros temas em torno do ser e da realidade que contempla pela linguagem suas inquietudes em todos os vieses: políticos, sociais, existenciais, religiosos, metalinguísticos, filosóficos e artísticos, como a ambivalência da escrita, a usura no garimpo, a vida e a morte, o feminicídio, a natureza, o ser, as mudanças climáticas, as relações entre as pessoas, o mistério salvífico da literatura, o engajamento do escritor e assim por diante.

Nas suas micronarrativas, que, através de fragmentos, sintetizam, em cada uma delas, totalidades (como no Romantismo alemão), são tais como cápsulas plenas de engenho e beleza, cujo intuito é pensar sobre o ser e a realidade que o envolve. Toda uma investigação se intui dos contos de Tere Tavares, que também faz considerações sobre como o mercado cataloga o não livro como livro, como literatura, tecendo uma crítica ácida contra a coisificação do literário. Como escritora que é, seu papel consiste em praticar o ato de pensar sobre seu artefato linguístico, a face multifacetada das palavras grávidas de luz, no qual a escrita nasce para um mundo melhor, apesar da máscara terrível do homem. É necessário resgatar nossa unidade perdida pela divisão da realidade que nos aprisiona numa rede mecânica. Em Luz, de Tere Tavares, a arte literária está posta como um verdadeiro tapete que se estende para os leitores. A eles, cabe tecer-lhe as asas rumo à ruptura, ainda que transitória, com os grilhões da mordaça social em que nos movemos: “Não à ditadura entrópica da Literatura”, pois “a escrita é uma tapeçaria sobre a qual depositamos nossos pensamentos”.

Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ) - 

Outubro de 2024.