Honrada com essa análise do livro Luz, (contos, edição da autora- 2024),
feita pela Escritora e Dra. Alexandra Vieira de Almeida (UERJ)
publico-a em sua íntegra.
Trazendo a inofrmação de que, essa resenha foi publicada, também,
pela Revista Caliban de Porutgal, PT.
Para acesso segue o link:
https://revistacaliban.net/a-luz-multifacetada-das-palavras-em-tere-tavares-c7740f3cd551
A luz multifacetada das palavras em Tere Tavares
Por Alexandra Vieira de Almeida –
Escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)
As palavras, no mais recente livro
de contos de Tere Tavares, Luz (Ed. do autor, 2024), conduzem o leitor
pelos vários matizes da luminescência, naquilo que elas podem revelar em pleno
sol de translúcidos espelhos pelo viés da objetividade, das reflexões
filosóficas e máximas que concretizam o poder do real e sua relação com a mente
humana, projetando, por sua vez, as sombras que tecem o ocultamento próprio do
fazer literário em seu reino de subjetividades em moto-contínuo. Entre a luz
mais clara da manhã à luz bruxuleante, que oscila, deixando, em seu rastro, ora
densas camadas ora faíscas tênues; a escritora de Cascavel, também artista visual,
costura uma malha textual plena de signos vários, não traduzindo uma unidade
temática em torno dessa mesma luz, mas dando ensejo à pluralidade de seus tons,
em que a solidão, o diálogo entre os saberes, a fragilidade, a morte, a
velhice, o amor, entre outros, quebram a monotonia das trivialidades mais
óbvias. Em sua obra, não há obviedades, como se lê na epígrafe de Victor Hugo:
“Aquilo que causa noite dentro de nós também pode deixar estrelas”.
Dois textos críticos belíssimos e
profundos teorizam sobre sua escrita, o prefácio de Amanda Kristensen e o
posfácio de Giovanni Francomacaro. Amanda afirma que Tere Tavares em sua obra “articula
conto, crônica e aforismo”. Realmente, suas intensas interrogações sobre a vida,
entremeadas como linhas ígneas no tecido das histórias, perfazem um processo
complexo e multifacetado em que a luz das palavras acessa o âmago da
existência. Ao citar uma frase de Flaubert, com relação ao romance Madame Bovary, Giovanni diz que “cada
história pode ser entendida como uma biografia em que o autor brinca de
esconde-esconde consigo mesmo”. Essa é a verdadeira máscara teatral que Tere
Tavares utiliza para a procura do leitor por sua mais explícita face.
No conto de abertura, “A alma não
pede, exige”, a autora faz um diálogo fecundo entre Ciência e Natureza, em que
ficcionaliza as reflexões de outrem em suas próprias divagações, não como um
espelho, mas como um alinhavo de novas linhas com sua densidade literária, novos
sentidos aos conhecimentos científicos através de suas fórmulas ficcionais. E a
escolha do nome Albert, citado no conto não é gratuita, associando-se à geometria
não euclidiana, que embasou estudos de Einstein. Percebam a tessitura argumentativa
neste conto: “As interrogações expandem a realidade”. Para depois, explodir em
movimento cuja poesia e o dom artístico servem não como simples complemento,
mas como componente essencial dessa realidade que se alarga: “Às vezes, não ver
o mundo no lugar de vê-lo é uma arte, é não habitar o óbvio, é fugir da
vulgaridade sem mergulhos ou voos fatais”. Discute, também, sobre temas atuais,
como a inteligência artificial, citando máximas instigantes como contraponto.
Há poesia e lirismo em suas frases,
aliando Ciência e Literariedade. Uma outra voz entretece a mente de Albert,
fazendo dele um cientista-poeta, assim como existiram filósofos-poetas, como os
pré-socráticos. No final, há uma longa explanação poético-filosófico-científica
com uma iluminação explosiva de pura beleza imagética e metafórica. Discute
sobre a relatividade de tudo, a provisoriedade, numa polissemia de vozes, em
que a ficcionista mesma expõe o narrador. Utilizando frases longas e de efeito,
por vezes, nos impacta com uma afirmação curta, mesclando vários registros
linguísticos e de estilo. O ritmo tem sonoridade plástica, construindo um
quadro completo diante de nós, quando rima vã com divã. Suas palavras se
organizam e se bifurcam numa composição rítmica que toca profundamente as avenidas
do real tornado linguagem.
Em “A chuva pousa as pálpebras”,
temos a forte presença da relação entre os elementos e suas combinações. A
natureza entra em contato com a sensibilidade da artista. Há frases potentes,
em que a natureza vai aderindo a ela – a linguagem –, estabelecendo uma ponte
entre a natura e a cultura: “A rosa sente a chuva. Vou-me percutida em átimos
de palavras soltas, palavras amorfas [amá-las é amar a vida]”. Há luminescência,
a luz de sua escrita ilumina a compreensão do texto, e uma fenda, uma rachadura
dão lugar à imaginação. Também encontramos, em suas palavras, a reflexão sobre
a arte de criar, num processo metalinguístico crescente como o silêncio e o
vazio, o antes da criação, de onde provêm a linguagem e o dom do ato de
inventar os símbolos mais plenos de luz e sombras, que se projetam nos papéis
brancos da literatura: “O dorso translúcido da mudez suspende-se em fragmentos sígnicos
e paradoxais”.
O eu, também, busca encontrar o
outro para dar sentido à sua vida, ele, o leitor que pode preencher esse vazio
textual feito de ardência, fulgurações e efervescência. Clarice Lispector era
mestra nos seus questionamentos sobre o eu, num diálogo constante consigo mesma,
o autoconhecimento, levando a hipóteses sobre a existência. Com seus monólogos
interiores e fluxos de consciência, Tere Tavares apresenta uma escrita única e
singular, mesmo que faça um tributo a uma tradição literária e de conhecimentos
diversos, em que a escrita é um diálogo intenso e constante com a vida: “Sendo
eu sem mim, ainda sou eu”, Ou ainda: “Para entender a minha escrita, há que
conhecer-me: a grandiosidade de uma obra se iguala à tragédia do seu autor”. Luz, de Tavares, é rico em metáforas e
imagens. Metáforas itinerantes que viajam pelos percursos da escrita,
metamorfoseando-se e diferenciando-se o tempo todo, utilizando-se de máscaras
imaginárias que deixam os vãos para a voz sair como um apelo para a essência do
ser e, ao mesmo tempo, como sua aparência, como o corpo ficcional do texto.
Tere Tavares se vale de metáforas de um lirismo perfeito e exuberante, como em:
“uma ovelha sem nome, órfã de lã”. É a própria reflexão sobre o papel da
escrita, que é, na verdade, um questionamento sobre o eu, o ser, acerca de temáticas
universais como o amor, esse pássaro “abstrato” que nos leva à transcendência,
não tendo uma “explicação”.
Suas interrogações se estendem para
o campo dos mitos, da cultura, da ciência, da psicanálise e, principalmente, da
literatura e das artes em geral, circulando por várias vias dançarinas do
pensar e estar no mundo. A relação ser/mundo é uma incógnita que reflete a própria
dimensão literária que oculta por entrelinhas movediças os arcanos do real. Sua
interrogação interior é uma viagem para dentro de si, é um itinerário pelos
mapas da linguagem, pelos fios visíveis e invisíveis da escrita e do eu: “Eu,
que nunca nasci completa. Eu, que sou um ser estranho e invisível a mim mesma”,
num constante refletir sobre o ser e o pensar sobre o próprio texto. Suas
frases são labirintos latentes que escondem o centro em sua potência
linguística e cognitiva.
A metáfora da luz tem um
significado mutante no seu livro, cujo título esconde os seus signos
diversificados, ímpares e oscilantes, símbolo do próprio ato criativo, que
mescla a luz e a escuridão, dando à luz, num parto aquoso e com forte dor, os
seus textos ficcionais, uma luz que ilumina e ofusca, que atrai e causa as mais
variadas sensações no outro, nos leitores ávidos por enigmas e deciframentos de
hieróglifos textuais que invadem sua escritura enigmática nos mistérios do ler
e do escrever.
No conto “Ensaio sobre o nada”, o
leitor está diante de um ensaio sobre a vivência da dor. Com afirmações e
máximas, Tere une, como é pleno em seu estilo, a linguagem objetiva e
subjetiva, em que o filosófico se mistura ao mais lírico-poético numa espiral
das horas, na qual o gosto saber-sabor da língua soletra o sensório das coisas
e dos objetos, cujo percebimento do eu vem à tona em expressões que remetem àquele
ruminar e mastigar as palavras com vagareza. O “rumor da língua” barthesiano se
infiltra em seus poros, trazendo o gosto do prazer da linguagem, na qual o
desprazer e o dissabor constituem a própria existência e resignação de ser
escritor. Como o equilibrar de um ser vacilante na corda bamba da vida. Nesse
conto, assim como em outros, há uma gradação entre o eu e as coisas, o eu e a
palavra, o eu e o tu, o eu e o mundo, culminando no clímax da linguagem
ficcional, cujo êxtase apreende o real do ser e do mundo: “Deveria eu que
caminho pela imaterialidade ver mais? Sim, ele disse, e me deu a mão”. E com a
perda da aura na modernidade, no seu viés benjaminiano, podemos ampliar aqui,
na obra de Tere, para a contemporaneidade, aquela perda do mistério que há em
tudo, num processo de obviedade que nossa sociedade busca: “A melhor forma de
decifrar um mistério é desmistificá-lo”.
O eu e o tu são amantes, também,
como num diálogo existencial e erótico ficcional. A polissemia dos signos e a semântica da luz
incendeiam corpos, sentimentos e pensamentos dos amantes, que se fragmentam e
multiplicam nos seus espectros, trazendo o reflexo do humano para o literário
como num jogo de espelhos, onde se miram e se buscam nos significados duplos do
dia e da noite, em seu caminhar de oposições e segredos.
No final de cada conto, como este
aqui, há uma síntese, o que confere um toque meteórico e monumental ao conto, como
a maioria, curto: “A coragem de levantar os olhos para o horizonte e pensar
está para poucos. O afeto é sempre superior às paixões”.
“O pássaro” faz um panorama sobre a
fragilidade e como o pouso, as forças telúricas do mundo, pode adquirir o voo,
mesmo que imaginário e celeste para os sonhos do escritor, esse pássaro que tem
o corte das asas como dom de criar novas com o sangue das palavras. Numa
revoada, Tere mede o voo e faz o pouso para alcançar as linhas fiáveis do
texto, voar por entre as palavras é alcançar o cerne de sua escrita complexa e
inerentemente poética. A pausa é o pouso do pássaro para descansar e refletir
sobre suas asas plenas de ares linguísticos. É preciso planar e pousar para se
deglutir e mascar as palavras, refletindo sobre o itinerário, a viagem aérea. O
voo e o pouso da leitura com os olhos da acuidade ampla levam a interpretações
mágicas que encantam a visão dos leitores. Esse pássaro aqui, no seu conto,
terá um defeito de sua própria essência de ave, a falta das asas que lhe caberiam.
O mundo animal é revelado com sua mãe-ave, sendo esse universo a própria
metonímia do humano. A pequena grande história de um frágil pássaro e sua família,
a imensa família que é a humanidade.
O pássaro passa por intempéries e
sofrimentos, o fora e o externo lhe causam intensa dor: “friagens inclementes”,
“terras dobradas” e “ventos álgidos”. Seu vocabulário, por vezes, rico e
rebuscado e, por outro lado, de uma claridade profunda, remete às várias
facetas da luz, que ora clarifica, ora projeta a sombra no seu ocultamento
implícito. A potência do frágil, neste pássaro incomum, é “compensado pelo seu
inquebrantável espírito”. O paralelismo dos reinos animal e humano, com sua
força e fraqueza, aparece, por exemplo, quando se fala que o “ser” (animal –
palavra aqui intercambiável com o humano), necessita de “calor”, “alimento” e
“luz”, pois todos precisam de proteção e cuidado. O pássaro “não crescera com a
suficiente nutrição”, o que, no futuro, trará sérias consequências. E ele
atinge a maturidade. Assim este pássaro desafia a lógica, alcançando aquele
espírito vago e imaginativo da poesia. De conteúdo existencial, seu conto é uma
fábula contemporânea sobre a fragilidade do ser e seu estar no mundo.
As asas como sinônimo de vida, o
voo e sua falta como finitude e angústia, revelam o amargo sentir deste pássaro
que não procura a solidão como subterfúgio, formando uma família a quem dá amor
e proteção, diferentemente da sua mãe: “Restou-lhe a cicatriz circunscrita no
dorso, o desequilíbrio do corpo e a humilhante condição psíquica”. E continua:
“A supressão da parte mais bela e importante de si mesmo o impediu de gozar a iridescência
plena do céu”. Deixando de ser celeste para ser telúrico, fincando-se na terra
com sua pássara e filhos, produz os voos mais poéticos através do seu dom de
imaginar. Deixa sua essência principal para encontrar uma experiência
coadjuvante que não corta suas asas imaginárias e metafísicas, o voo do sonho e
da transcendência, pois, apesar de sua força atávica, sonha planos de voos
cósmicos e suicidas. A latência do voo é a angústia da alma, que não se
transforma num monstro horrendo e disforme, mas num ser compassivo e desejoso
do melhor para a família.
No conto “Semântica ou a casa onde
melhor me sinto”, temos referências heideggerianas
já no título, pois o filósofo escreveu que “a linguagem é a morada do ser”. Tere
Tavares parte do paradoxo do sentir como a mescla entre o riso e o choro no
primeiro parágrafo do seu texto para tecer comentários sobre sua própria
escrita, num círculo que produz sua chama cheia de lampejos brilhantes, entre a
Teoria e a própria ação do narrar: “Escrevo com a languidez das mãos molhadas no
luar dos retornos menos felizes, ao salmodiar da noite que se prenuncia afoita
e tímida”. Dessa forma, a teoria da literatura sai dos compêndios e flana sobre
suas palavras no escrever mesmo e todas as teorizações e complexidades que o
literário requer.
Também encontramos o misticismo,
com a presença de Deus, em que a subjetividade entra como seu interlocutor,
indo do sagrado aos ritmos da natureza, essa produzindo o renascimento do ser
por seus elementos, nos quais a natureza se camufla em linguagem. E a unidade
se constrói pela pluralidade: “Sinto-me habitada por filhos de papel e
tinta...” e que “sou os livros, as letras, os leitores, os injustiçados, a resistência”.
Aqui, parte do mais universal e plural para algo mais específico e particular
que é nossa sociedade com seus reveses. Nessa ambiguidade entre a Literatura e
o Social, Tere cria uma simbiose poderosa: “Há arte somente quando há humanidade”.
O real e o ficcional se unem para criarem um centauro duplo, metade arte animal
e metade corpo humano, pois a literatura é linguagem inaugural, que tem a
origem no ser humano, adentrando o reino das palavras no seu terreno ainda
virgem, pronto a ser explorado por leitores bravios.
Em “Um rosto à submissão da
linguagem”, as palavras multifacetadas trazem a vida, possibilitam o encontro
com o outro e com o mundo: “Precisa ultrapassar a si mesmo como se um corpo
outro o submetesse à estranheza alheia para sentir-se no cais da linguagem e,
nela, reconhecer-se estonteantemente febril e vivaz”. Há algo de primordial e
originário que identifica o livro e o ser num mesmo deslumbramento, um
relicário. O amor à vida que nos enaltece. Ela trabalha também com reflexões
sobre a velhice, o nascer, o amadurecer e o morrer e com uma passagem que
remete como um eco sonoro e rítmico de um poema de Cecília Meireles. Tere
escreve: “Não posso dizer que estou triste nem que estou feliz”. O minimalismo
individual como potência do eu maior, do ser humano em toda sua grandiosidade,
leva o corpo definhando, com a aproximação da grande viagem, a uma alma intacta.
Após sessenta contos muito bem
elaborados e profundos como o corte de uma espada de samurai, o livro se
encerra com o conto número sessenta e um, “Fragmentos de luz”, na verdade, uma
colcha produzida por breves luzes intensas e tensas, uma espécie de conjunto de
microcontos e minicontos, que são minutos de reflexão, pérolas mergulhadas no
mar da poesia, em ondas criadas pelos leitores com a avidez de atingir as
areias da vida em seus múltiplos temas: sabedoria, desigualdade, poluição,
solidão, perdão, o ser, autoconhecimento, sagrado, arte e erotismo. Como nos
fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes, Tere tece reflexões em
cada parágrafo sobre amor, literatura e
uma variedade de outros temas em torno do ser e da realidade que contempla pela
linguagem suas inquietudes em todos os vieses: políticos, sociais, existenciais,
religiosos, metalinguísticos, filosóficos e artísticos, como a ambivalência da
escrita, a usura no garimpo, a vida e a morte, o feminicídio, a natureza, o
ser, as mudanças climáticas, as relações entre as pessoas, o mistério salvífico
da literatura, o engajamento do escritor e assim por diante.
Nas suas micronarrativas, que,
através de fragmentos, sintetizam, em cada uma delas, totalidades (como no
Romantismo alemão), são tais como cápsulas plenas de engenho e beleza, cujo
intuito é pensar sobre o ser e a realidade que o envolve. Toda uma investigação
se intui dos contos de Tere Tavares, que também faz considerações sobre como o
mercado cataloga o não livro como livro, como literatura, tecendo uma crítica
ácida contra a coisificação do literário. Como escritora que é, seu papel consiste
em praticar o ato de pensar sobre seu artefato linguístico, a face
multifacetada das palavras grávidas de luz, no qual a escrita nasce para um
mundo melhor, apesar da máscara terrível do homem. É necessário resgatar nossa
unidade perdida pela divisão da realidade que nos aprisiona numa rede mecânica.
Em Luz, de Tere Tavares, a arte
literária está posta como um verdadeiro tapete que se estende para os leitores.
A eles, cabe tecer-lhe as asas rumo à ruptura, ainda que transitória, com os
grilhões da mordaça social em que nos movemos: “Não à ditadura entrópica da
Literatura”, pois “a escrita é uma tapeçaria sobre a qual depositamos nossos
pensamentos”.
Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ) -
Outubro de 2024.