segunda-feira, 20 de julho de 2015

Verted'ouro

Van Gogh - Flor Jardim - 1888
Verted’ouro

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se a arder no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
(Olavo Bilac)

O sol continua a sumir por entre as pedras, com seus raios quase entristecidos. As ondas se esparramam como anjos incansáveis. A mulher com nome de flor ou de santa tinha a voz intensa, breve, e, principalmente risonha. Assemelhava-se a uma evolução musical de suave atmosfera.  Não bastasse o canto, tinha o encantamento, o pleno exercício do querer, aceitando o que não fora possível mudar. Pensava com o sentimento.

Seria um estado de beatitude elaborada para o inestimável memorial das criaturas iluminadas. Descrevia o que sentia enquanto a outra forma de si mesma escrevia o que pensava. Quando tudo cessava era o mirar do seu pensamento sem olhos, nunca o seu sentir sem palavras. “Fui melhor quando não fui eu”. Constatou ainda com dúvidas que o único meio de obter uma noção, mesmo que mínima sobre o bem e o mal,  é conhecer as lágrimas com a compaixão de quem é capaz de sentir pelo outro o sofrimento e a alegria.

Sua pretensa ingenuidade entrou instantaneamente noutro par de olhos fixos na escuridão.  Gostaria de dizer que não mudara em quase nada e que estava até mais bonita, mais feliz. “Os recados, às vezes, passam sem ruído, nem sempre cegos”, murmurou imaginando que viria do infinito algum elfo para esvaecer a sua hesitante decisão.

Não conteve o impulso de retornar e preencher com delicadeza o que carregaria para sempre no seu importante jardim sem importância.

Ainda que não soubesse, a engenharia das minudências soava como um límpido cristal, permitindo um quase perfeito retrato, à distância, do lugar onde estava. As mudanças invisíveis, enganadas, aparentemente imóveis.  Conduzia palavras como se fossem água e sol, universos autônomos refrescados livremente nas transparências.

Tentava dissuadir o berço de estrelas longínquas – ninguém é capaz de tecer melhor sobre o acaso do que a fugaz eternidade que lhe conferiam, a cada vez que, ingenuamente, as imaginava caladas.

“Com que amor me vive essa porção que me escapa. Sempre soube que a escreveria e seria com a alma que não domino.” Murmurou no passo que dava em direção de si mesma, como se aninhasse um segredo revelador. Na dupla face que a tudo contorna, mesmo veladamente, havia um zelo imprescindível. Os deuses possuem a mesma e inauferível dimensão que passa invariavelmente pelo desejo, à presença de perpetuarem-se no âmago das consciências e revolverem-se na imperfeição do que nunca morre. “Permaneço no outro como sendo o meu árido exterior re-fletido numa solução inevitável. Com a beleza párvoa de não estar em mim.”


Do livro "Entre as Águas" (prosa) 2011 By Tere Tavares

Nenhum comentário: