Dos degraus junto à calçada prorrompiam papéis e folhas varridos pelas lufadas de ar, prenunciado a torrente que se aproximava. Sob a leveza das malhas de algodão aguardava os pingos da chuva que lentamente lhe umedeciam a pele, o fôlego palpitante, apoiado por uma hachura decidida.
Caminhou ondulando as pernas,
apreciando o tremular das gotas como um afago de nanquim que lhe retirava as
ardências do dia.
Largou os sapatos encharcados junto
ao chão luzidio da casa – a janela debatendo-se contra o vento numa cantoria
estridente. As paredes lhe ampararam o cansaço. Via-se no debrum da água que a
banhara como se só naquele instante realmente valesse a pena desvelar-se.
Os livros que carregava no colo
amaciaram a mesa e as transparências da sala. Largou-os como quem liberta
retratos de outrora, recolocando-os novamente no olhar. Quase perscrutava com
exatidão pueril o chilreio das folhas semi-abertas, devorando as capas, os
desenhos das capas, tateando: até onde tudo era somente o mosto de histórias, sons
desertos, cores aninhadas em outras cores, águas dentro de outras águas?
Buscava rapidamente o ar mais
puro e perfeito, como quem se dispõem a arrefecer o frio, a alma disposta sem
repressões nos vãos da natureza. O barulho da enxurrada preenchia as fendas
rudes da casa, o telhado ensurdecia-se dos pingos desfeitos na cerâmica. Viu-se
no desassossego das ações mais simplórias. A louça do dia anterior ainda
rescendia à canela e erva-doce. Quantas vezes tomara o chá desanuviada de afazeres
para melhor prender-lhe o sabor? Não tinha dúvidas de que se filiaria algum dia,
com tempo, ao movimento slow. Pensava
enquanto o vapor do chá se misturava à poeira da chuva.
Lá fora para onde resolvera retornar,
as flores permaneciam no seu crescimento inevitável. A legitimidade de estar
conspirando para além da linguagem lhe parecia a incompreensão de assumir detalhes,
a desistência decidindo por uma oposta intimidade apaixonando-se por silhuetas
abstratas como se soubesse que, ao flanar sobre as coisas importantes, passassem,
essas mesmas coisas a não ter mais lugar algum no mesmo e luminoso mundo que as
pensara. No incomum, talvez mais
oportuno e incômodo, longe de superlativos ou relativismos, a lucidez de argüir
sobre o que é grandioso ou necessário nasceria invariavelmente da suspeita de
não chegar a nada sem a via crucial dos sentimentos.
As pétalas palmilhavam-se de um
amarelo descrente, olhava-as, em tintas musicais – colheu várias, sentiu-lhes a
seda, como se pedisse desculpas por não considerar-se uma delas.
Pinças de brisa se estendiam na
claridade morna, retorcendo-lhe a curiosidade.
Com alívio, retornou para dentro da casa. Amaciando-se na umidade da
aragem, desfazendo-se sobre lençóis e travesseiros rebordados de um cetim confuso
porque de letras brancas que sobre o
negro cansava-lhe o fundo mar dos olhos.
Pensava como se sonhasse... e escolhia
retornar à beira do areal, ao menos até o verão retornar, a pele sugada por um farfalhar de asas, em movimento de abraços...bastava-se
num colar de ametista, afoita, sulcada pelo que se fora, quiçá em ramas de mangues, de uma garça que
vigiava – o vento ruminante torcia as gaivotas,
tomava notas ao secar-lhe os olhos suspeitando que a sensibilidade das retinas
desse em algo possível de prodigalizar.
Adiava as ondas enquanto ganhava novos óculos escuros, as têmporas
renovadas pelos filtros duros de lume, da brandura árida que não mais lhe
provocava lágrimas. Como se assim pudesse evitá-las.
No lado mais despido da praia o
bailado das dunas era um dueto a agigantar-lhe os cílios no rumor sonoro e
miúdo do algaço. A vida era real como o vento que soprava a memória dos sais
retidos de Suminha. De outro ponto os cardumes contrariavam a correnteza e as
redes como se fossem seus olhos multiplicados em cepas e borbulhas, em busca de
fertilização.
As mãos restavam finas produzindo
fogueiras sobre o mar – repletas de matizes azuis e verdes, a rebuscar a
serenidade líquida transportando-a, imensurável, para uma tela qualquer, sem
importar-se se alguém diria que era um auto-retrato, um resto obscuro retirado
da coloração irresistível dos corais.
Os dedos ágeis como o choro
contido nas achas por arder, perfuravam o silêncio, prosseguiam nos mimos hirtos
do horizonte, bebia do sargaço, do sumo esgarçado nas bordas dos barcos que
mascavam a madeira carcomida pelas cordas da âncora. “Sobe um pouco mais
Suminha, preenche o ato duplo dos gestos com o teu verde pueril – há ornamentos
suficientes para estilhaçares condições que por um descuido fútil do destino
não mais te pertencem. O tato Suminha”.
Retomou os despojos. Alguma coisa
sobrara dos rabiscos que ousaram ferir a brancura daquele dia, das polifonias
daquele vento, daquele sal, se a preenchessem de mais cor, de mais força – o
que havia perdido permanecia em origamis devorados por fungos de esperança – quantos
pronunciavam que a experiência não se media entre os dedos, entre o passado e o
futuro, tampouco em entretantos.
Suminha do desacato chamuscava os
feitiços luminosos, não suportava a idéia de submeter-se por mais tempo ao
torpor. “Que cores acordam-te mais a música por dentro Suminha? Assim, na
umidade? Que rio te quer decantar esse azul-vermelho-débil-verde”. Dá voos aos
beijos azuis, lava a lama das asas, o corpo fenece, lúbrico, como se moldado
pelas águas que lhe caíram do céu, na face, na secura febril dos olhos, o azul
fiel lhe dá guarida.
A xícara de chá é óleo, medium,
piano, tecido. Agora sentia o sabor, controlava as gotas, recriando-se, diluída
do silêncio, na leveza de esvaziar-se no que lhe agradava. O peso leve da louça
era igual ao da vida, da sua vontade que enfeitara feito Penélope cega, partituras
dispostas num circuito infalível... a limpidez dos nadas que carregava como
adornos. Dos engenhos orquestrados, das teclas, das paletas. Demais o que desconhecia,
era desnecessário dispor ...os azuis salpicavam-lhe os cabelos, como pincéis de
outono musicando-lhe o que, independente de solicitações, concebera para o
mundo – Suminha é a multiplicação assídua dos sons suspensos na memória, na
umidade lídima de cada segundo que ensaia abrir-se no horizonte.
Imagem: Renoir - Mar
2 comentários:
Tere
Esse parágrafo já é o comentário: Tomo-o com tua permisão para balizar aqui.
"Lá fora para onde resolvera retornar, as flores permaneciam no seu crescimento inevitável. A legitimidade de estar conspirando para além da linguagem lhe parecia a incompreensão de assumir detalhes, a desistência decidindo por uma oposta intimidade apaixonando-se por silhuetas abstratas como se soubesse que, ao flanar sobre as coisas importantes, passassem, essas mesmas coisas a não ter mais lugar algum no mesmo e luminoso mundo que as pensara. No incomum, talvez mais oportuno e incômodo, longe de superlativos ou relativismos, a lucidez de argüir sobre o que é grandioso ou necessário nasceria invariavelmente da suspeita de não chegar a nada sem a via crucial dos sentimentos. "
Sublimes formulações. Dessas que devemos manter em nossa pauta, em nossa perspectiva.
Beijos
Líndissimo texto, Tere!
Obrigada.
Um abraço
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