Sobre uma nobreza
duvidosa
Um par de sandálias
tingidas à mão, acompanhado de outro par de sapatos de couro de crocodilo
vermelho – comprados numa dessas liquidações, por mero consumismo, ou
sucumbência do tédio – na robustez de um fluir que insistia recrudescer num
monturo de falácias, abandonaram o peso das caixas e desenharam um losango
sobre os lençóis morenos. Quanto pode confessar o que é suprimido?
A mulher era adepta
ao Feng Shui. Criativa, quase
demente. Fazia arrumações seguidamente, livrando-se das coisas que não usava
nem viria a usar. O vestido de seda ficara confuso por um tempo maior, talvez
numa ilusória tentativa de manter vivas as coisas imponderáveis – com o tempo são
outras as noções do que se deve nutrir – transformou-o num lenço para colorir o
seu pescoço de garça. Dos retalhos surgiram quatro ornamentos em forma de
mariposa e dois em forma de estrela de Davi. O azul, potencialmente calmo, evitaria
agitações – aprendera no portal cromoterápico. O desdém de algumas bijuterias,
cujas memórias já não exalavam nenhuma paixão, ganhou o cabaz das doações.
Porque era necessário
afogar-se num pequeno oásis, nalgum perfume de engano onde não se confundiria transportou-se
para os abstratos. Sem perscrutar, displicentemente exposta, cerrando os olhos,
não para impedir sentimentos, mas para depurar tudo com maior concentração e
rapidez. Revolveu as folhas compactadas e quase inertes dos pensamentos
infalivelmente expressos e acarinhados. O contorno das pálpebras já não é o da
menina que lhe singra as portas da alma. Pautas a sabor de erva-doce – a força
e a mobilidade dos desejos: “E esse inverno, cruel e necessário, que enrijece a
fluidez dos rios e adormece as flores das plantas. Embora sejam perceptíveis os
seus brinquedos e verdadeiras as suas dobraduras, não sei o que é o tempo, nem
o que posso alcançar sem ele. Diante da inexorável sonolência que não dividirá
o cansaço dos meus olhos, do que não piso, tudo é insônia e excesso de voz,
química e loucura. Inquebrantável é o gigante que persigo ao largo desse
aramado. Enquanto houver um suspiro roçando-me a fronte, enquanto forem
enquadráveis os ângulos do absurdo, toda a via será meio falsa, meio falange,
meretriz por essência.”
Fotos: Ipês- by Tere Tavares
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