Desdobramentos poéticos - Por Krishnamurti Góes dos
Anjos
É possível conciliar o espírito da poesia com as
formas da prosa? Foi pergunta semelhante, mas bastante esclarecedora, que
Charles Baudelaire considerado como o responsável por uma guinada decisiva na
poesia moderna, dirigiu em carta a um editor de seus textos, ali por volta de
1861: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma
prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica
em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do
devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.
Desde então e, cada vez com mais frequência, os
escritores(as) têm produzido uma escrita algo arbitrária, despida de
formalidades de composição, e com o espírito próximo da anotação íntima.
Parece-nos que um impulso reflexivo serve de meio condutor para despertar
imagens e ideias. E temos afinal, uma abordagem ao mesmo tempo lírica e
incomodada, atenta às subjetividades e ao mundo ao redor sem, no entanto,
deixar de estar relacionada com as qualidades da prosa; por isso mesmo,
apresentando tendências voltadas para acolher textos maiores – narrativos ou
não –, mesmo que procure fixar um olhar lírico sobre a realidade. As frases e
parágrafos acabam por supor uma dinâmica extensiva para o texto e as imagens
evocadas.
A palavra perde seus contornos unívocos, e torna-se
multisignificativa, irradiadora de significados variados. Com o andar da
leitura, percebe-se o caráter de prosa desses textos – presente em tênues fios
de enredos e nas conjecturas das personagens, interessadas em resgatar fatos e
sentimentos que envolvem o fio narrativo. Textos em prosas poéticas que
eventualmente, recorrem a figuras típicas da poesia, como a aliteração, a
metáfora, a elipse, a sonoridade das frases etc. Contudo, o emprego desses
elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discurso.
Destinos desdobrados, da escritora e artista plástica
Tere Tavares segue tal seara de fortes conotações poéticas embasadas na preocupação
com o humano e em refinado trabalho com a linguagem, que permitem considerar os
textos como prosa poética. Poéticos porque são textos que não se fecham num
sentido único, ao contrário, abrem-se ao final da leitura e apontam para o
infinito, para o futuro e para dentro do “eu”. Faz-nos meditar sobre o penoso e
solitário trabalho de aperfeiçoamento da consciência individual, conseguido
graças à contemplação atenta do mundo e à investigação minuciosa dos submundos
que compõem a alma. Trecho do texto “Maria Pedro”:
“Escrevendo
como se falasse, eu lhe permito confiar em dados diferentes, em escalas de
conflitos insuperáveis e frases finais. Ensino-lhe a ver a dor maior para que
ele sinta a sua dor diminuir. Abasteço-o com arquejos inéditos como um alfabeto
infinito, onde cada soluço propõe uma nova música. Ele se entretece nessa
leitura como um estudo de concordância às normatividades vibracionais
capturadas quando se cola os ouvidos ao chão fechando as pálpebras. Isso supera
avaliações de forma ou conteúdo. Eu lhe permito um sinal para outras
fronteiras, a interpretação mapeada das catástrofes desconhecidas, das
monumentais ideografias que completam a paisagem involuntária da sua própria
luz; bastam-me esses voos que evolam de mim por puro deslumbramento”.
Se alguns textos se recolhem ao silêncio de
confissões envolventes, outros guardam, todavia, uma atitude de provocação
libertária, sobretudo naqueles que, de alguma sorte, tocam no sentir feminino e
nas tantas e tamanhas violências que as mulheres ainda hoje padecem, e que ao
final das contas acabam por se constituir nas “lost voices” do mundo. E isto
percebemos já a partir do título da obra que se caracteriza por uma intenção
manifesta. Desdobramentos da alma feminina. Percebe-se nitidamente a centelha de
inquietação de uma prosa levada ao estado da poesia, mas sem abrir mão do plano
narrativo. Verdadeira simbiose entre os gêneros tradicionais. Alquimia entre
prosa e poesia.
Mas isto também se faz por uma tendência meditativa
que vai se acentuando e constituindo linha de força da produção da autora. O
pendor reflexivo desdobra-se num leque de muitas faces, afinal. E pode mesmo
prescindir da centralidade do sujeito lírico, articulando um ponto de vista que
se entremostra oculto sob um fluxo de frases impessoais, e de que são exemplos
flagrantes, textos como: “A feminina arte de nascer”, Notas de amor de uma
mulher em muitas”, “Hino às obras inversas”, “Deméter”, “Filhos de papel e
tinta”, “A arte não conhece o impossível” e “Sobre o filho de José”. Já na segunda
parte da obra sob o título de “Outros destinos ou ensaios dos fins” que, dentre
outros aspectos, foca no perpassar do tempo em nossas vidas, merecem destaque
textos profundamente reflexivos como o são, “Nada precisa ser perfeito”,
“Ensaio dos fins”, “Amulherquedesejaser” e “Translúcida”.
Para o espírito reflexivo interessam mais as
ambiguidades e torções de sentido; são mais adequadas as palavras da ironia, do
jogo de contrastes ou da liberdade associativa. Desvios que a linguagem poética
produz para se afastar do imaginário comum. Acionado pela força do detalhe ou
do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o procedimento reflexivo
costuma recorrer aos valores elementares – sensações, sentimentos, percepções
–, com o propósito de expressar determinada condição. Qualquer coisa ou ser,
têm o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de imagens.
Saliente-se finalmente, que a atitude meditativa
que prevalece em boa parte dos textos não provoca necessariamente uma
depreciação do efeito poético. Ao contrário, essa mesma visão crítica recusa os
mecanismos sociais que banalizam a linguagem e continua desejosa de uma
expressão outra, em que seja possível uma linguagem pessoal e ao mesmo tempo
comprometida com a experiência vivida. Sem dúvida uma atitude geral que tende à
uma concepção Holística da vida, uma forma de se ver a si mesmo e de ver o
mundo e todos os seres de uma forma global, como um todo, onde tudo está
interligado, onde nada é isolado, tudo pulsa simultaneamente, onde o todo está
presente em cada parte. Não existe nada desligado, isolado. Uma maneira de ver
que cada ser humano está diretamente conectado com todos os seres humanos e com
todas as demais coisas do universo.
Num mundo que está passando por tão rápidas mudanças em todos os
sentidos, seja nos avanços tecnológicos, seja nos costumes e crenças, é de suma
importância adquirirmos uma visão ampliada e um entendimento maior da vida. A
autora ao caminhar rumo às sombras que existem no interior do ser e que guardam
os mistérios primordiais, aposta no profundo poder da arte para transformar o
indivíduo e incorporar poesia à vida humana, para que esta se transforme num
poema contínuo e numa encantada realidade. Positivamente soube urdir textos que
arrebatam o leitor numa torrente de símbolos, imagens e significados.
Krishnamurti Góes dos Anjos
Escritor e Crítico Literário
15/082021
Nenhum comentário:
Postar um comentário