terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A mulher dos cabelos encaracolados

Branca By Tere Tavares - Aquarela- 2014
Tinha os olhos desgrenhados, a boca em forma de coração, um olhar quase escondido, angustiado, mas via, e intuía. Algo a impulsionava a seguir sem importar-se com o que diriam os outros, aqueles que a conheciam ou viessem a conhecê-la. Gostava de olhar-se no espelho, conferir o delineador, o batom, a tez e os cabelos, sim, aqueles cachos assemelhavam-se às uvas maduras pendidas das parreiras — transportou-se, em segundos, para o tempo em que vivera em meio aos pomares e às hortas, às ervas e relvas, conhecia as plantas medicinais, as frutas silvestres, as borboletas, os pássaros, os matagais, os murmúrios das florestas, onde havia cedros e araucárias, as estradas e as encruzilhadas, as colmeias, os bichos e seus chiados, como um inescrupuloso encontro entre amor e mais amor. Afugentou-se pelas ruas aquecidas da metrópole, agora sua paisagem era a corrida inconsumível de um dia-a-dia que jamais se adiava. E, no entanto, passava, passava, passava. E aquele breve e infindável instante em que permaneceu, como se andasse para trás, revelou-se na magia de um legado que alguém lhe havia reservado. Não perdeu a graça nem o santo nem o pranto nem o tempo. A cada tremular estrutural do seu corpo, a cada passo, assegurava-se de guardá-lo, como uma apólice a garantir-lhe alguma proteção vinda do aparente desconhecido. Como no dia em que lhe arrancaram a bolsa do braço e o celular e o relógio e o camafeu e os anéis e algumas gotas de sangue — e o corpo, a vida, não fosse o amuleto.

A partir do original: http://www.escritorassuicidas.com.br/edicao48_7.htm#teretavares48

Um comentário:

☆Lu Cavichioli disse...

Sempre bom ler-te, Tere!

Texto repleto de imagens vivas, assim como se estivessem em 3D.

abraços