Odara
Matura-se em
fases tão irresignáveis quanto é certa a sutileza das mudanças, sendo invariavelmente
o resultado do que imagina sem evidenciar o que aparenta ao olhar alheio – um
desabafo pretérito e inescrutável.
Às vezes pensa em enviar-lhe o último
sentimento que o navegou, o passeio que reescrevera no ontem. Lembra-se das
coisas que, quase inconfessavelmente, lhe confessou. Conhece-a talvez mais
profundo do que alguém que tenha convivido consigo, entretanto, é tão triste
perceber que jamais lhe dirá que um dia a percorreu, quanto mais que esteve tão
próximo do seu amor, que foi lancinante a voz da razão a retorná-lo, quiçá, a
um porto seguro – aprendera com o tempo e guarda isso para sempre – é grato por
cada palavra que não trocaram, por cada devaneio que, mesmo agora, ao rebuliço
de lembrar-lhe o sorriso, se avizinha dele, na mente, na pele.
No alto do seu quinhão de vida
nunca perdeu a importância, como se reconhecesse entre todos os anônimos uma
alma similar à dele, à curiosidade, à inquietude que, mesmo madura, ainda o
habita – e como reconheceria a si mesmo no que desejava se assim não fosse?
Fora tão pudico, fora como é, tanta a demora, a fugacidade de estar naquele
lugar, naquele dorso irresponsável. E se pergunta sem encontrar resposta ou
repelindo-a: porque algo tão breve fora suficiente para impregnar-lhe o resto
de todos os seus dias?
Ainda não conhece toda a química
com que foi feito. Fora do seu espaço há outros espaços que o incitam
indefinidamente à busca. Como não identificar-se no que explora, como sendo ele
próprio a descobrir-se? Do
contrário, como nasceriam, quanto se tatuariam de si os ocasos do mundo?
Nas
linhas cujo espelho inevitavelmente o reflete, não é possível refletir –
suspenso como um ponto hesita entre ser sensato ou enlouquecer. Percebe que as
margens jamais se encontram e, talvez por isso, permaneçam inseparáveis
singrando, indeléveis, o placentário espaço de onde tudo surge.
Com deuses bons
e maus a lhe agarrarem o pensamento confia nas palavras como alguma coisa que
não degenera. “Mesmo que o amanhã não surja não será por que o mataste, mas por
que terás morrido antes que ele chegasse”.
Ouve de um Sadhu
que a verdade não supera a busca pela verdade. E que belas sílabas sibilam por
entre os minutos esculpidos de sua presença. Vê-se como um anjo azul que se
recusa a cair, um velho cancioneiro que ainda é juventude.
Um reino entre as formas
Uma sinceridade fingida dava palavras ao
silêncio – alimentando as que, pela manhã, despertavam como heroínas
sorridentes, sem o lamento da derrota ou o delírio de imaginá-la, para redimirem-se
ao final na arena da linguagem, umedecidas, como se fossem compactadas ao corpo
em correntezas de um curso sem som, comovendo as raízes das horas que sucumbiam
aos enigmas, alimentadas pela clorofila das nervuras folhares – a
inevitabilidade.
Os olhos de um verde lavado, os cabelos
cacheados a colorir-lhe a beleza com as nuances da terra. Sua impaciência era
semelhante à felicidade. O entardecer lento adormecia na areia... as pétalas de
espuma perfumando o mar, feito de recifes e algas, deixando no seu rosto de
olhar celeste o calor de uma selvagem ternura, como se, entre as ondas,
caminhasse seu coração de conchas saltitantes, esverdeado e profundo sob as
estrelas do céu.
Em tudo permanecia sua invisível
presença, os fabulosos homens do mar, homens do sol, completariam o entardecer
com sua tez de cobre e seus músculos de música distantes como o dia, as rochas
de pele corroídas pela luz. Sempre adivinhava quando chegavam, amiúde, com
agitada conformidade os esperava.
O terror afogava-lhe os gemidos como uma
pequena vaga entre os barcos escuros, uma razão sem memória na sua inesquecível
insistência de loucura. “Deus, somos uma lâmina de pó no pendor de tuas
virtudes”. O rosto banhado de recordações parecia não ter idade como o perfume
frio das laranjas. As folhas acolchoadas de tíbia neblina preenchiam o resto da
tarde dourada.
Descansava no jardim com seu destino sem
confidências ou favores, o assombro de texturas singulares, a tristeza de
matriz invariável sobre a névoa espessa das serras num trajeto carregado de
vazio e sombras, resplandecia, lama sólida de uma luz agressiva, nascendo num
diamante rubro para iluminar outra e outra noite.
As coisas que ao mesmo tempo se
alimentam de vida e morte não duram indefinidamente. No hálito frio da
madrugada extasiava-se numa curta eternidade. “Todos os rostos são muitos
rostos”. Uma espécie inconsciente de felicidade elemental, um estado ao mesmo
tempo estático e indiferente que anula as recordações e impede ao homem
trabalhado insistentemente pela terra, de confortar-se com ela, apoiado no
dorso das argilas.
A secreta umidade das lágrimas
deixava-lhe a alma caída junto aos pés, carícias neutralizadas pelo hábito,
linhas indecisas, flutuantes, ansiedades pausadas acenando mudanças rodeadas
pelo fulgor inolvidável das sementes do luar, como um olhar de criança cega que
tivesse visto uma película sem tê-la visto – só os detalhes devastadoramente
ternos importavam. A acha do tempo, a respiração das árvores acabaria numa
cinza ligeira e rosada. Nuvens de fumo com a mesma e completa inexatidão.
Contos Publicados na Antologia EscritArtes
"A Arte Pela Escrita IV` (2011), Editora Mosaico de Palavras- Portugal
"A Arte Pela Escrita IV` (2011), Editora Mosaico de Palavras- Portugal
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