Um resquício ou as folhas
clandestinas
Primeira carta: “Os dias se
levantam com um gosto único de dias. Preferia um gosto que não doesse nem
ferisse. Ando a esmo o mesmo e estranho caminho no raso em que se demora o
desmando de ir. Os pés de ipê já floriram, a primavera se coaduna com pássaros
de imprecisos trinados. O amarelo no fundo do meu olho é apenas o sol habituado
a expulsar a marca de um presente que embora rejeite não posso modificar. Fecho
a névoa, a que abrirá o coração cioso e distante que acalenta tantos mundos – acima
da fragilidade há os temores findos no segundo em que encontro a inexprimível
liberdade de sorrir o conforto das horas.”
Há como enfrentar os sentidos sem
cortá-los ao meio? Se a imediata compreensão é possível também é provável
refratar um pensamento com outro. Nunca vi a voz que andava de sapatos novos.
Não a conheço. Mas é como se a conhecesse. Alguém a descreveu numa outra carta
que recebi: “...reside num país distante, é humilde e rica, faz teatro, e, embora
às vezes pareça beirar à arrogância, tem como principal característica o rosto
angelical e a alegria contagiante.” Escreveu ainda – e não fosse isso eu
estaria menos confusa – num Post Scriptum: “consigo meus próprios sapatos e,
pelo prazer de andar descalça, há sempre novos pares a minha espera.”
Querida Clarice, em sua homenagem
a luz que chora a hora da estrela aprende a viver sua eternidade e a descoberta
do mundo se debruça em saber como nascem as estrelas. A bela e a fera ensaiam
mais um sopro de vida. A vida íntima de Laura (a mulher que matou os peixes) é
quase de verdade, de corpo inteiro. Quando a via crucis do corpo lhe segrega sussurrando “onde estiveste esta
noite” a sua felicidade ou liberdade clandestina transforma-se em água viva. Seu
espírito soma-se a uma aprendizagem inovadora – o livro dos prazeres – como se
desfrutasse continuamente de uma legião estrangeira, ponderando sobre a maçã no
escuro, o lustre e os laços de família. Não é de estranhar que perto do seu
coração selvagem sobreviva apenas o mistério pensante da paixão. Com atenção:
Lispector.
Texto do Livro Entre as Águas by Tere Tavares
Foto by Tere Tavares
Nenhum comentário:
Postar um comentário