Me ninas dos olhos
“A nitidez é uma conveniente distribuição de luz e sombra.” Goethe
Resolveu conversar com as pupilas. Não havia como isentar-se dos reflexos – apropriar-se é perder.
Voltou para a rua. Sentiu, secretamente, uma indizível sensação de alívio ao perceber a possibilidade de atravessar grande parte do percurso sem permitir atormentar-se com sentimentos comuns. Multidões de visões perdidas. Afinal, quem assumiria sem o risco do erro, a licença para aferir com exatidão, ou total isenção, o condenável?
Investigou com toda a suavidade possível, detendo-se nos semblantes, tentando não infringi-los, como se adentrasse em sulcos intermináveis – usava materiais conhecidos e desconhecidos para percorrê-los, acreditando ter desenvolvido, ainda que rudimentarmente, um método eficaz de observação. Não se curvaria diante de nada imóvel, opaco. Altares da alma – assim chamava os olhares – como afugentar aquelas perseguições vivazes?
De algumas pupilas retirou distâncias, sorrisos plásticos, todas as fundições do arco-íris. De outras, frases inteiras que mais pareciam um enorme luau de estampas confusas e céu.
Era possível ver um imponderável manto de cores e interpretar o que nem imaginava compreender. De modo que lia os olhares difusamente e, retratados na sua incredulidade interior, também seus corações.
Não havia outra aparência que não fosse a que definitivamente se destacava da estranha profundidade de todas elas, pela simples razão de não haver razão para serem diferentes do que realmente eram.
Havia um par, pulsantemente castanho e singular, que conseguiu prendê-lo, talvez, por toda vida: o que vagava dizendo-lhe o que via sem nada revelar, e que o fez absorver-lhe a voz com selvagem interesse: “Sou a dos sentidos de cristal, a afortunada sofredora que tem à sua frente o rol das futilidades repletas, a que nada promete, exceto que haverá encanto enquanto durar o mistério”.
(Desenho da autora)
12 comentários:
Linda sua Casa. Estou a passear e tudo me encanta. Obrigada por tanto aprendizado.
Com carinho
Síl
Amei:
Intenções
Quero respirar todo frescor que está ao meu redor
sem preocupar-me com o que se deixou de falar,
sem mensurar a ansiedade que corta
as raízes – quem sabe das lágrimas e seus liames –
sofrer consciente de que passará,
como passa o mar e seu doce lamento.
Quero edificar novamente o que poderia ruir.
Não importa que não percebam.
Prefiro ver os perfumes e os gestos,
os flocos em liberdade,
como estrelas maduras
espalhadas sobre mim.
E, ao reabrir a festa que não se findará,
confundirei com o céu
o meu limite não convencionado.
Tere, tão lindo o Poema "Intenções", que o publiquei no "Mínimo Ajuste". (http://minimoajuste.blogspot.com/)
Espero que o aprecie.
Com profundo respeito,
Sílvia
Olá Silvia,
Que alegria ter a tua vinda, a companhia. Senti-me não somente feliz, mas duplamente honrada, pelas tuas leituras. Agradeço o carinho de teres publicado o poema "Intenções" no "Mínimo Ajuste". Uma flor que colho neste constante caminhar!
Um abraço, felicidades, muitas.
Tere, querida amiga e poeta
O ser e o ter concomitante e simultâneo movimentando, instigando a uma busca infindável, existencial.
Amei o texto. Parabéns
Beijos
"É preciso estabelecer uma cumplicidade com o objeto que se está desenhando, até que se chegue a um conhecimento profundo dele. Não se desenha bem quando se conta uma mentira. E inversamente: se, num desenho de observação, você chegou a dizer a verdade, o desenho será automaticamente um bom desenho. Uma outra dificuldade do desenho de observação é que ele obriga a encontrar respostas para perguntas nunca antes formuladas. O que se produz no trabalho de estúdio muitas vezes responde a questões já conhecidas."
Esse pensamento de um grande artista plástico indica que o seu desenho é ótimo e encontra para questões formuladas muito raramente na literatura. Beijos e felicidades.
Salete,
"veramente" verdadeiro!
Djabal,
Guardo também esse outro pensamento de outro grande artista plástico:
"A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade".
Duplo abraço.
Me ninas, sim. E por que razão não me ninarias? De uns olhos de não se esquecer. Assim seu texto, Terê.
Rico. Foi um prazer pra mim retornar a este blog.
João,
Olhares que são sempre ternura e amizade. Obrigada pela visita.
Abraço.
Outros comentários:
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,32653.0.html
Tere querida,
Ah, os olhos trazem o olhar a tona, e tudo que está dentro vai para dentro do outro olhar... Amei a relação entre meninas e pupilas, e o significado de sua reflexão.
Beijos, com carinho
Madalena
Tere
"Conversar com as pupilas"...
A expressão, para além da beleza poética em que está imbuída, reporta-nos para uma comunicação singular, própria do detalhe com que se borda a alma humana e na qual a nitidez nem sempre é uma clara distribuição de luz e sombra, mas antes uma aguarela brilhante cuja cor é sempre muito particular.
Adoro os teus textos!
Um enorme beijinho
Madalena,
O olhar é imenso - como o mar.
Maria João,
E eu adoro quando vens!
Voltem sempre amigas queridas, meu abraço.
Por vezes as amarras vêm dos olhos mais inesperados....
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