quarta-feira, 30 de março de 2011

José Réus da Silva

Talvez tivesse lido no dilúvio da criação das coisas que a chuva estava em tudo. Quando pensou iniciar qualquer movimento debateu-se inexplicavelmente assustado em frente às mãos das grades. Seguras e mornas retiravam o suor de seus braços. O trem que o levaria partira um mês antes. Assim como a nova chance de mudar ou desaparecer.

Viu os mesmos trajes brancos de tantas e passadas investidas como numa apoteose de receitas impossíveis. Tolas. Perdidamente ineficazes. Prostrou-se, punitivo e irreajustável. Todas as fórmulas de superação lhe pareciam inúteis. Falsamente felizes.

Sobrava-lhe ainda um bom lugar para morar. Sem envergonhar-se, sorveria da liberdade o mesmo que a liberdade não lhe permitia abolir. E carregar consigo a sede indesculpável, toda ela, exatamente como um homem que acaba de embocar o que de melhor lhe fornece a complacência disfarçada em bondade.
Tinham lhe proposto continuar naquele ofício. Com um pouco mais de tempo, aos domingos, demorando-se mais e mais sobre o enredo insidioso e mal remunerado do envelope, do mesmo e distante departamento, farto, exausto como a sua resolução de perdurar.

Não tinha vocação para repetir e repetir. Rugiu deliciosamente quando lhe entregaram o diploma. A quase definitiva inércia. A única louça disposta nos seus quinze minutos diários de intervalo para repor as energias. Durante mais de quinze anos permitiu-lhes os talheres. E a gastrite. E o ácido lático do excesso que resultou nas fragilidades orgânicas.

Os médicos não souberam curá-lo. Nem os livros de auto-ajuda. O dia a dia perdera muito da respeitabilidade – fatos em que se obliteram humílimas tarefas, como cortar as unhas, vestir a camisa, fazer a barba. Somente depois de muito tempo obteve a diligência da lógica abusiva que colaborou na geração de todo aquele absurdo (quanto vale aprender a dizer não?) – as fatídicas mínimas coisas ataviadas de infortúnio.

A perda da independência é psicologicamente trágica. Talvez mais claudicante que a própria dor. O mais um não era ele – o número preferido do Capital. O degenerado. Nem seria. Não agora que se descobrira novamente dono de si. Abriu mão da indenização por perdas e danos, da reparação moral embora lhe fossem devidas e justas.

Por conta própria retomou a ciência das ervas – camomila, tanchagem, espinheira-santa, cavalinha, melissa, erva-tostão, e erva-cidreira. Intensificou o que já obtivera da hidroterapia. O banho de ar para o segundo pulmão humano – a pele, como ensina o Dr. Yum – uma fortaleza para o sistema nervoso autônomo. Tudo a ver consigo – uma epopeia de auto cura.

Amadurecer gera o custo dos perigos e o lucro dos iluminados. Adaptou-se. Firmando-se a cada dia na consciência sincrônica dos elementos mais sutis. Suave como o universo que o seduzira desde sempre. Como se saísse de um eclipse.
A flexibilidade do tempo para a estruturação do indivíduo segundo os próprios padrões evidenciam benefícios incalculáveis à saúde – concluem as pesquisas científicas da “Revisão Sistemática Cochrane”.

Não sem a duradoura convalescença obteve o bastante para viver mais harmoniosamente. Estabilizou a própria dignidade com genuína disposição.
Aventurou-se num segmento menos cruel e igualmente ostensivo, uma aposta mais revogável – outra missão constantemente renovada que se converteria no prazer, no engrandecimento da alma. Só que agora depondo uma arma de clarividência infalível: distinguiria, sem delegar ao menosprezo os aprendizados colhidos ou por colher em cada momento, como neutralizar implacavelmente o que o desrespeitasse.


A partir do original publicado no Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4963

Foto da Autora

11 comentários:

luís filipe pereira disse...

Eis um conto que ousa adentrar-se, com a subtileza da linguagem poética em que se conjugam hipálages inesperadas, pelos meandros dessa "sede indesculpável" em que se resume a liberdade, em que se resume a alavancagem psicológica rumo à libertação.

com admiração,
filipe

Tere Tavares disse...

Luis Filipe,
Ao deparar-me com tuas impressões me fica um silêncio maduro de que ainda é preciso amadurecer, como navegar. Obrigada pela leitura.

Agradeço também aos escritores e amigos que deixaram mensagens no site Cronópios e/ou enviaram
e-mails. Meu melhor abraço!

antes blog do que nunca! disse...

"A perda da independência é psicologicamente trágica."

Tere,

nas tuas palavras encontro a generosidade de quem reconhece que há coisas que estão na nossa mão e outras não.

Sentimos tristeza quando não está nas nossas mãos uma solução.

Na constância encontramos um caminho viável ao conforto.

1 Bj*
Luísa

Carlos Ricardo Soares disse...

Gostei deste texto compassado de uma sensatez que se situa no plano em que as adversidades abrem brechas à perseverança.
Abraço.

Unknown disse...

"Na tua página o movimento =
Rotação do substantivo

Sustentado pelo verbo.
Provocas a transformação

Da antiga cítara em órgão,
Mudando-se o eco em grito.

Desde Murilo Mendes até você o caminho se refez, a diferença está no detalhe, na escolha de palavras que dão um toque suave, dançam de acordo com a modificação do ser, daquela transformação e do ganho da liberdade e equilíbrio. Meus parabéns, como de hábito. Felicidades. Muitas.

Valquíria Calado disse...

•*♥ڰۣ¸.•*♥ڿڰۣ✿ڿڰۣ¸.•*♥ڿڿ•*♥ڰۣ¸.•*

Sobre o amor

Fácil de acontecer, difícil é descrever.
Amar é sentir sem querer, é querer sem perceber.
Fugaz ou duradouro, não importa o tempo, o que vale é o sentimento.
Que o eterno seja pra sempre, mesmo que seja breve.
Sobre o amor é tudo que não sei, daquilo que já sei.

Fim de semana de luz e paz,
abraço.

ڿ•*♥ڰۣ¸.•*♥ڿڰۣ✿ڿڰۣ¸.•*♥ڿڿ•*♥ڰۣ¸.•*♥ڿڰۣڿڰۣ

Brasileiros enlutados ♥♥♥♥♥♥♥♥♥...


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Salete Cardozo Cochinsky disse...

Ha, esse tempo que decorrre para que alguém sinta que o que livre artbitrio é só na instância do desejo que pode ser mudado, recomposto, recriado enquanto.
A subjitividade, essa que de tanto, tantos e todos por momentos precisam deixar no mínimo para que possa ser propulsora de movimentos de REDENÇÃO.
Beijos amiga Tere, agora volto a estar mais presente.

Salete Cardozo Cochinsky disse...

Obrigada por também proporcionar que nossos ouvidos levem até a alma essa bela música que aí está como mais um estímulo para que a poética, que sensibilidade faça mais um elo entres as almas, espíritos, psiquê possam alçar voos mais consistentes.
Beijos

Mª João C.Martins disse...

Um texto cujo prazer da leitura, cresce linha a linha, e nos prende como se fossemos folhas à procura das palavras certas para deixarmos de andar à deriva.

Um beijinho, Tere

Ricardo e Regina Calmon disse...

digitaste texto post esse, como se nas nuvens estivesse,caríssima escriba poeta e plastica artista

viva la vie

Tere Tavares disse...

Queridos Amigos,
É-me, param além de incentivador, um eflúvio de vital energia o vosso encontro com o que escrevo.
Obrigada!
Felicidades a todos, sempre.