terça-feira, 17 de junho de 2014

Sem pena de ter

"Mulher Lendo" 1874- Pierre Auguste Renoir


Sem pena de ter


A Igreja tinha um cheiro de antiguidades. Um balcão repleto de livros cobertos de pó obstruía o corredor. Algumas abelhas se distraiam pousando em velhas imagens que rodeavam as paredes. O rapaz passou as mãos de leve nos pés quebrados de um Santo Antonio. Uma lástima deparar-se com tudo naquele estado. Ele também tocou os bancos de jacarandá. Sentou-se.

Tanta atenção lhe despertava o lugar que quase esquecia o que o levara até ali.
A moça da rua de ontem. Como não atender-lhe as dúvidas, esquecer-lhe o tom suplicante?
Daria cabo do seu egoísmo cumprindo a promessa. Antes rezaria pelos mortos com a mesma devoção que o faria para os vivos. Pediria pelo fim da angústia dita esperar, da enfermidade nominada crer, e tudo o mais que lembrasse as tristes ilusões do mundo. Pediria perdão pelo que pedisse e pelo que pensasse.

Naquela manhã de Maio morrera a morte do seu olhar na moça da rua de ontem. O assíduo assédio daquela alma se estendia sobre o silêncio daquele cenário gasto. A manhã de Maio era ali, com ele, ajoelhado, mentindo qualquer escrúpulo, revelando ocos de fora e de dentro. O resto era medo que o deixava na margem lúcida de próximas águas. O repasto, a moça da rua de ontem.

Vestia a viva ânsia de sair o mais depressa dali e levar-lhe o que a cobriria como a uma rainha. A sua. A imagem de ouro de Santa Rita. Um pé na escadaria e outro na rua. Voltou. Queria também os livros para salvar o amor no amanhecer e no poente.

do livro "Meus Outros" 2007 by Tere Tavares

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Era uma vez a preguiça

Era uma vez a preguiça

Chegou por uma janela verde e se multiplicou em várias outras janelas. Avistou uma figura humana que portava na cabeça um chapéu de palha: “O homem do futuro é o homem holístico” disse o chapéu da figura humana à cabeça da janela verde “A simplicidade é um mistério muito simples”. Acordara sonhando que era a figura holística ou o futuro de chapéu esverdeado a sonhar que dormia acordado. 

Outro homem, de baixa estatura, cabelos sebosos, roupas esfarrapadas e maculadas, acompanhado de uma mulher de longas tranças usando uma tiara de moedas antigas, saia abundante e rodada; dirigiram-se ao deserto verde do chapéu marrom. Passaram pelo quarto da vestimenta artesanal: “Viemos cumprir a missão”, disseram em uníssono exibindo um baralho. A mulher pediu à figura humana ou ao seu chapéu que se aproximassem. Começou a rodar vertiginosamente no mesmo instante em que três gatos – um angorá turco, raro, com um olho azul e outro amarelo, um siamês e outro malhado, também se aproximavam.

Num olhar sábio e terno o angorá roçou-lhe as pernas ronronando palavras aparentemente ininteligíveis com as três línguas que ainda lhe restavam. “Impressiona a quantidade e a qualidade do que julgamos conseguir ou conhecer antes ou depois de nós, não”?

Os gatos olhavam para o casal verde da janela esfarrapada e para a figura de janelas humanas parecendo sorrir inutilmente para as honras da casa e os idiomas do chapéu. O persa malhado cochichou para o angorá: “Sansão, está na hora. Será que estão preparados?” Os dois felinos paralisaram ao ouvirem de uma carta a voz empastada avisando que a mesa seria servida em seguida. “Tenho minhas dúvidas de como falam as cartas. Aprendemos, mas nunca o bastante para esquecermos de novamente aprender.
O futuro é de quem pensa. Depreender é uma quimera enigmática e intransferível que a humanidade inteira se recusa a definir” – disse o herói quase acovardado após ocultar-se num  número obtuso que seria imediatamente substituído por outro número de melhor aspecto e valor. “A dor é sozinha”, repetiu antes de sumir inexpressivamente noutra soma de um sem número de indivíduos. Ou cartas.

Continuaria ousando imorredouramente enquanto esperança houvesse. “Há quem seja nessa multidão de moucos, há quem ouse em meio às vozes emudecidas, há quem chore quando já não se acredita em lágrimas, quem resista quando já não é possível (?) resistir”. As idéias ou a falta delas não seriam limites. “Talvez, um dia, se possa alcançar uma fraternidade verdadeiramente culta. Libertas Quæ Sera Tamen!”.

Esse era o seu quadrado. Liso. Deliciosamente aflitivo.Talvez a percepção seja um senhor inominável, porém reconhecível, não a qualquer um, mas à maioria senhora de um senhor qualquer, controvérsias, mal ou bem-humoradamente levadas a sério. O poder das coisas deveria atuar a favor da vida, como presentes. Aos diferentes cabe a sina de o serem, reconhecerem-se felizes, porque o normal não é de admirar embora tenha o mesmo merecimento. Ponderar porém, fica distante da beleza perspicaz com que nos brindam as margens – sustentando águas de um rio revolto, e ao mesmo tempo manso, porque é singular e inevitável o seu curso”.

Não soube até aquele ponto de onde retirara as palavras, se dos gatos, da figura verde do chapéu humano, ou da sua própria cabeça. Do lado oposto.

do livro "Entre as Águas" by Tere Tavares
foto by Tere Tavares



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Anoitecer em Ipioca - Óleo sobre tela - 50x70cm - 2011 - Tere Tavares


Essa tela está como capa da Revista Ponto de Vista,
Acompanhada desse poema:


Cântico do Cântaro


Essa raiz de água
Esse oráculo de agora
emoldura um reino disposto ao sol e à noite
alcança um porto de melodias inolvidáveis,
as colmeias da alegria suspensas nos salgueiros
a erva sem fronteira minguando em terraços de páginas,
num soluço de semeadura, madura e abstrata,
no extremo e frio traço da manhã
ungido pela caixa acústica do mar
Tudo branco, mas não sem cor.

Do livro "A linguagem dos Pássaros" By Tere Tavares Editora Patuá 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

No ovo do novo

No ovo do novo

Um avião mergulhou no mar. À sua passagem restaram espécies irremediavelmente sucumbidas.

Eu pensei em como se tornara possível uma pista subaquática e se os tripulantes e passageiros haviam evoluído para uma respiração diferente. “Muito provavelmente”.
Disse uma voz irreconhecível vinda de Não Sei Onde.

Meus pés sentiram o solo úmido, agradável, vi o mar de outro ângulo, as ondas se arremessavam vagarosamente na areia. A praia estava repleta de pequenas aeronaves, aves ressuscitando e peixes vivendo fora da água. Todos respiravam quase à vontade naquela que parecia uma efervescente revolução biológica confusa, muito distante de chegar ao fim, como tudo, aliás.

Era um pesadelo ou um prenúncio de futuro, onde o homem trocava de lugar com os habitantes dos oceanos e rios, uma maneira de implorar-lhes perdão ou expiar as culpas, por admitir enfim que os seres aquáticos também têm alma e família.

O mesmo reconhecimento em ralação aos seres alados, os atropelados pelas malhas invisíveis não tardariam muito. Muito não tardou mesmo. Num céu delirante os sapiens-sapiens, sem protetor solar ou qualquer kit de sobrevivência, mal suportavam as asas obesas e ofegantes e sucumbiam de calor.

O sol trabalhara de forma secretamente inovadora nos últimos anos – à sorrelfa de astronautas, ciber satélites espiões, ideogramas e oráculos do I Ching, centúrias de Nostradamus e profecia Hopi.  Da Vinci não errara ao prever – “não prever é já lamentar”– que “um dia o homem teria asas e uma vez tendo experimentado voar, caminharia para sempre sobre a Terra de olhos postos no Céu, pois é para lá que tencionaria voltar.”

Os peixes aceitaram o pacto e foram morar nas casas do homem. Por benevolência – característica intrínseca dos habitantes das águas – não usariam arpões, nem redes, nem anzóis, sequer iriam pescar e viveriam somente de aspirar o ar com guelras perfeitamente adaptadas àquela novíssima forma de obter oxigênio. “Parece muito justo” disse Não Sei Onde. Quanto aos pássaros, uma nuvem gigante de nome Muito, encarregou-se de levá-los para o interior das próprias plumas e lá prosperaram felizes para sempre (?) junto aos seus filhos de algodão.


Muito também tomou para si a incumbência de cuidar de Não Sei Onde, por ter descoberto ser o seu irmão desaparecido há milênios da fronteira genealógica espacial. Muito também especulou consigo mesmo que o Céu era uma árvore inexistente e Não sei Onde, ao ler-lhe o pensamento, prontamente concordou.


Texto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
http://www.musarara.com.br/no-ovo-do-novo
Publicação no site "Musa Rara".
Imagem: Flying-Machine-Leonardo-da-Vinci-1490
Publicado também na Revista "Grito"
:http://www.revistagrito.com/#!No-ovo-do-novo/cywl/F48DE876-4898-48C1-8A22-3B37B2F778D5

terça-feira, 1 de abril de 2014

Contos publicados na Revista Diversos Afins - Dedos de Prosa III

Clemente


O sol sumia por entre as pedras entristecidas. As ondas, como enormes maços de nostalgia, esparramavam-se incansavelmente sobre a imensidão difusa da praia.

Era uma vez um desvairado pairando sobre a vastidão. Atravessou a crueza da sombra e foi ter com os rochedos. Era possível que estivesse num lugar onde provasse toda a sorte de sensações. Seu objetivo era o lado oposto. Lá encontrou ondas maiores e ameaçadoras. Alguém vendia ilusões a cinco reais.

Resolveu retornar ao lugar de onde viera. Sentia-se vigiado. Sequer se lembrava dos seus. No brilho dos finos grãos de areia, como redigidos por uma estrela de meio-dia, lia-se o motivo de cada ser que ali houvesse aportado. Seriam legíveis aos outros os passos que dava na mesma proporção que lhe eram nítidos os rastros dos outros?

O desvairado, contorcido pelas bifurcações do pensamento, almejava estar diante de outro cenário.  Mal podia conter o torpor da sua terrível ansiedade. “Deves sentir cada direção escolhida, seja como for”. Aplaudiu ao sinal como quem se agarra ao intransponível. “Terás de sentir também esses ares recém plantados, e os infinitos. Queres? Quem sabe as areias movediças? Não recomendo que te satisfaças tão rapidamente”.

Atendeu sorrindo com a febril consciência de um ponto sem ponto. Provara a todos e a si mesmo – a mente liberta o fazia sentir-se lucidamente fecundo, eufórico. O primeiro nascimento, o segundo viver, o terceiro término. Não lutou contra a canção espiralada no peito. Brincou com os seixos. Guardou alguns búzios. Não se tornaria opaco outra vez. Era como se repartisse a própria vida sobre um tabuleiro interminável, o delírio cinza e sublime – sem perceber a loucura que o acompanharia até o céu.


Conto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Imagem: Leonardo Mathias
Para leitura dos demais contos basta clicar aqui: http://diversosafins.com.br/?p=7220

quinta-feira, 20 de março de 2014

À moda de Iara


À moda de Iara


"É difícil se abrir, mas quem disse que é fácil encontrar alguém que escute?" (Cecília Meireles)

Despretensiosamente, dava campo ao ímpar redesenho do efêmero – a linha da transitoriedade – algo em que é possível crer, um sim contínuo para demorar-se no reanimar dos espelhos, reconhecer-se e novamente navegar a existência – quando desapropriada de si fosse toda gente, e todo “eu”.

Haveria como não pensar? Luzir sem verter? Embriagar-se de índoles e indulgências onde construções e intuições fossem capazes de mostrar sem exibir, onde não se relegasse o ritmo ao vazio, com tantas estranhezas quanto há estrelas no céu?

Solitariamente perambula em águas incômodas, tiaras de aguapés. Não quer ser apenas técnica ou sentimentos com o propósito de se tornarem egoisticamente inesquecíveis,  grafismos inelutáveis dados ao tropel dos ventos, qual oblações irrefletidas cujos desígnios nada comandam.

Agora é quase uma auréola a confessar-se surpresa com o descanso de ocasos fugidios, a dúvida e a ineficácia da culpa – quiçá uma fórmula de driblar o confronto e a verdade.

Que fosse algures enfático... se deslindaria em consentimentos – quem não parte ou nunca diz adeus, que assassino não se diz repetidamente inocente?

A veste desnuda imita o amor quando não escolhe formas ou defensores. Há que vivê-lo somente, imperfeito, com a lucidez habilidosa da escuridão, como se nada restasse – nem os personagens.

Silhueta altiva, Iara, como a urgência das macieiras, rotunda, serva de igarapés e ninféias, quase igapó, como se acreditasse ou soubesse de antemão todos os segredos e ainda assim afirmar multiplicar-se – entre experimentar e adquirir – um rio obsequente.

Mestres sabem calar... segregou o leito dos veios às manobras das falésias.
A menos metade é agora uma necessidade irreprimivelmente líquida, socorrendo os sentidos com uma sinceridade oblíqua. “Quando eu vier não ouvirei além do que me interessa.”

O sol se estendia na finura da chuva que assomava correntes maiores, como um vício de verbos extasiados no olho dos fios de água. ”Não os posso ver abandonados. É como se ao retomá-los me retomasse num fulcro inolvidável.” Quanto às pedras, se pensavam ou ouviam vozes – não eram diamantes e não soavam falsas em nada.

Reconhecera a fluência do que lhe correspondia. Sem sumir, ou obscurecer. Sem objetivar ou premeditar. Na claridade obstinada que doava, obtinha das faces dos olhos o curso das águas que, fatalmente, se aglomeram no mar.

do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Imagem by Tere Tavares

segunda-feira, 10 de março de 2014

In-Crível

 Guerra e Paz - Cândido Portinari - entre 1952 e 1956.
In-Crível

Após essa festa virá outra festa,
em campos verdes!
Verdes e caros e lindos.
E depois da festa dos campos,
virá a fresta do escrutínio.
O engano.
E nos sobrará a única coisa
que Pandora
não deixou escapar da sua caixa.

Poema By Tere Tavares publicado na Revista Ponto de Vista.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Auto




Auto
...a alma de neve e os livros ausentes de surpresa ou de orvalho, um poema, a luz do sol, Ah, se desejasse ultrapassá-la de forma que não mais fosse preciso representar o incontestável receio das elipses numa harmonia que só a natureza entregue a si mesma é capaz de executar, o último segundo em que coubesse, a hora de pôr-se a caminho e lutar por cada sopro de ar rodeado do que não se reteria sem angústia a labareda dos álamos avermelhados e o azul que se partia lívido, a nesga de outono e a folha rubi, amaria olhar, tinha certeza, diria que morreria do seu sim diria o que de si é se dissolvendo num contorno fugaz ao menos diria mais enquanto o rebulir das cigarras iniciasse a varrer o dia e a terra se encarregasse da próxima lágrima, o nada que seria ao mundo que de nada o revestiria quando fosse sedutor o bastante para prover o pensamento tão incomunicável quanto é verdade o que pensa, o começo, como apagar a vertigem do nunca do cão astuto, o segundo no escuro de haver a roupa simples de uma pessoa chata chegando à porta do primeiro andar, a bela do mosaico e um dia alto de trabalho num vestido chanell e um papel amassado para preencher saltos baixos em que o ócio não coube não o impediriam de atravessar, seria aquela noite mesmo que tivesse só os ladrilhos arrumou o nó do mosaico a gravata só tinha lugar para uma pedrinha de bem e outra de mal haveria chaves na porta o ócio não seria o sopro de vestido chanell nem o dia de trabalho o beijo de tafetá que amarrotou nos papéis a risca de giz ou o trabalho a roupa difícil de usar um formulário azul-marinho de sentimento indissociável e talvez nem lhe sobrasse o virtuoso ladrilho que absorveu o mosaico e entrou na angústia brilhante e sem saída a extravagância não é feita para ser usada por alguém elegante ou sério ...a elegância talvez fosse o ladrilho ou a moça uma angústia de seda e champagne a nova pedra o cenário de rubi a risca do não rodeava outro vestido petit poá ...nem o acerto incomum queria um celular que talvez nem viesse a usar exceto para remediar uma desculpa qualquer como um dia exaustivo de trabalho e um limite para pensar em como digerir o ladrilho rubi e a rua da presença que desaparecia num brilhante e ressuscitava num vestido de pedra ou numa mente de papéis o sopro dogmático não seguiu, não importava a camisa de festa ...a festa não era a roupa nem o equilíbrio o encontro que tem por destino nenhum destino nem o papel a amargura redonda e profana que sorrindo sustentou a coragem de adormecer e beijar o incomum num dia monolítico vestido de trabalho e probabilidades, a velha pedra de metal exeqüível na divina elegância daquela noite de vinte minutos a festa aconteceria quando ousasse e atravessasse com piedade e sem dó todas as pedras preciosas ao som de piano, que não chorasse a Sonata ao luar...noutra rua.

Texto do livro "Entre as Águas" BY Tere Tavares
Foto by Tere Tavares

domingo, 5 de janeiro de 2014

Porque o amor era profundo e a luz era cheia


  • Atravessou o dia sem que o tumulto o ferisse. Quando venceu a última alameda reforçou a certeza de haver forjado algo mais que uma simples defesa. Fosse de si mesmo, fosse dos grupos que, invariavelmente, se postavam num ponto qualquer do trajeto quiçá para arrebanhar futuros furtos ou consumidores potenciais de mercadorias ilícitas – novas vítimas.

    Tinha o resto da tarde livre. Passou pelo portão eletrônico. Desceu do carro, ligou os alarmes. Acelerou os passos para entrar em casa. Sentia-se protegido ali no seu pequeno símbolo de bem estar, ainda que angustiosamente.

    Ao chegar à sala viu-a no alto da escada, ignorava se frustrada ou feliz. Parecia calma e convidativa. Diferente dos outros dias, não indagou “porque veio mais cedo hoje”. As cortinas estavam semi-abertas e ainda filtravam das janelas os apegos diurnos.

    Ela sentou em silêncio no último degrau. Descalça, descansada. O emprego se fora há dois meses. Não suportou a idéia de que lhe dissessem sempre o que abordar, quando e o que compor – coisas a que nenhuma criatividade, por mais versátil que seja, deixa de sucumbir. Faria o curso tão sonhado com a bolsa de estudos que conquistara com tanto esforço. Já dominava um terceiro idioma. Finalmente o antigo projeto redesenhava-se. Ainda não lhe dissera sobre isso. Ultimamente seu interior parecia maior e mais intransponível do que qualquer outro lugar.

    Olhou-o como se não o visse há muito tempo. Os cabelos lisos e bem cortados. O corpo bem feito, jovem como o seu. Com sonhos? Era distante a última vez em que se lembrava haver lhe dito que o amava. A recíproca não era verdadeira.

    “Estou aqui imaginando qual a melhor forma de te tocar”, inclinou-se segurando o violino numa fatigada esperança. Nem menos árduo nem menos belo do que sempre fora. Ela pousou a cabeça no seu braço. Sentiu o calor suave da sua presença. Havia algo nele que a iluminava. E ele sabia. Como se ela fosse todas as estrelas e o sol.

    Para uma luz que acalenta outra luz nem mesmo o silêncio da música que anseia nascer parecerá opaco. Entre um perfil e uma face há bem mais que um simples testemunho. Não era preciso quebrar o encanto daquela plenitude com nenhuma palavra ou gesto.

    Ele não resistiu. “Eu sempre soube quando partias.” Escutou-o sem nenhum sobressalto. Ela balbuciou tepidamente a única dignidade que imaginava restar-lhe para calar o vazio que viria em seguida. “Nunca o fiz sem levar-te comigo.”

    Texto do livro "Entre as Águas" (2011)
    Foto by Tere Tavares.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Acácia - na Germina Revista de Literatura e Arte


http://www.germinaliteratura.com.br/2013/ageneticadacoisa_teretavares_dez13.htm

Publicação do conto "Acácia" na Coluna "A Genética da coisa" por José Aloise Bahia, a quem agradeço o convite à participação. Agradecimentos extensivos às Editoras Silvana Guimarães e Mariza Lourenço.
Abraço a todos, FELIZ 2014.

PS. Para leitura basta clicar no link acima.

Foto: Germina - Revista de Literatura e Arte, Dezembro/2013.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Odara

Odara

Matura-se em fases tão irresignáveis quanto é certa a sutileza das mudanças, sendo invariavelmente o resultado do que imagina sem evidenciar o que aparenta ao olhar alheio – um desabafo pretérito e inescrutável.

Às vezes pensa em enviar-lhe o último sentimento que o navegou, o passeio que reescrevera no ontem. Lembra-se das coisas que, quase inconfessavelmente, lhe confessou. Conhece-a talvez mais profundo do que alguém que tenha convivido consigo, entretanto, é tão triste perceber que jamais lhe dirá que um dia a percorreu, quanto mais que esteve tão próximo do seu amor, que foi lancinante a voz da razão a retorná-lo, quiçá, a um porto seguro – aprendera com o tempo e guarda isso para sempre – é grato por cada palavra que não trocaram, por cada devaneio que, mesmo agora, ao rebuliço de lembrar-lhe o sorriso, se avizinha dele, na mente, na pele.

No alto do seu quinhão de vida nunca perdeu a importância, como se reconhecesse entre todos os anônimos uma alma similar à dele, à curiosidade, à inquietude que, mesmo madura, ainda o habita – e como reconheceria a si mesmo no que desejava se assim não fosse? Fora tão pudico, fora como é, tanta a demora, a fugacidade de estar naquele lugar, naquele dorso irresponsável. E se pergunta sem encontrar resposta ou repelindo-a: porque algo tão breve fora suficiente para impregnar-lhe o resto de todos os seus dias?

Ainda não conhece toda a química com que foi feito. Fora do seu espaço há outros espaços que o incitam indefinidamente à busca. Como não identificar-se no que explora, como sendo ele próprio a descobrir-se? Do contrário, como nasceriam, quanto se tatuariam de si os ocasos do mundo?
Nas linhas cujo espelho inevitavelmente o reflete, não é possível refletir – suspenso como um ponto hesita entre ser sensato ou enlouquecer. Percebe que as margens jamais se encontram e, talvez por isso, permaneçam inseparáveis singrando, indeléveis, o placentário espaço de onde tudo surge.

Com deuses bons e maus a lhe agarrarem o pensamento confia nas palavras como alguma coisa que não degenera. “Mesmo que o amanhã não surja não será por que o mataste, mas por que terás morrido antes que ele chegasse”.

Ouve de um Sadhu que a verdade não supera a busca pela verdade. E que belas sílabas sibilam por entre os minutos esculpidos de sua presença. Vê-se como um anjo azul que se recusa a cair, um velho cancioneiro que ainda é juventude.




Um reino entre as formas

Uma sinceridade fingida dava palavras ao silêncio – alimentando as que, pela manhã, despertavam como heroínas sorridentes, sem o lamento da derrota ou o delírio de imaginá-la, para redimirem-se ao final na arena da linguagem, umedecidas, como se fossem compactadas ao corpo em correntezas de um curso sem som, comovendo as raízes das horas que sucumbiam aos enigmas, alimentadas pela clorofila das nervuras folhares – a inevitabilidade.

Os olhos de um verde lavado, os cabelos cacheados a colorir-lhe a beleza com as nuances da terra. Sua impaciência era semelhante à felicidade. O entardecer lento adormecia na areia... as pétalas de espuma perfumando o mar, feito de recifes e algas, deixando no seu rosto de olhar celeste o calor de uma selvagem ternura, como se, entre as ondas, caminhasse seu coração de conchas saltitantes, esverdeado e profundo sob as estrelas do céu.

Em tudo permanecia sua invisível presença, os fabulosos homens do mar, homens do sol, completariam o entardecer com sua tez de cobre e seus músculos de música distantes como o dia, as rochas de pele corroídas pela luz. Sempre adivinhava quando chegavam, amiúde, com agitada conformidade os esperava.
O terror afogava-lhe os gemidos como uma pequena vaga entre os barcos escuros, uma razão sem memória na sua inesquecível insistência de loucura. “Deus, somos uma lâmina de pó no pendor de tuas virtudes”. O rosto banhado de recordações parecia não ter idade como o perfume frio das laranjas. As folhas acolchoadas de tíbia neblina preenchiam o resto da tarde dourada.

Descansava no jardim com seu destino sem confidências ou favores, o assombro de texturas singulares, a tristeza de matriz invariável sobre a névoa espessa das serras num trajeto carregado de vazio e sombras, resplandecia, lama sólida de uma luz agressiva, nascendo num diamante rubro para iluminar outra e outra noite.

As coisas que ao mesmo tempo se alimentam de vida e morte não duram indefinidamente. No hálito frio da madrugada extasiava-se numa curta eternidade. “Todos os rostos são muitos rostos”. Uma espécie inconsciente de felicidade elemental, um estado ao mesmo tempo estático e indiferente que anula as recordações e impede ao homem trabalhado insistentemente pela terra, de confortar-se com ela, apoiado no dorso das argilas.

A secreta umidade das lágrimas deixava-lhe a alma caída junto aos pés, carícias neutralizadas pelo hábito, linhas indecisas, flutuantes, ansiedades pausadas acenando mudanças rodeadas pelo fulgor inolvidável das sementes do luar, como um olhar de criança cega que tivesse visto uma película sem tê-la visto – só os detalhes devastadoramente ternos importavam. A acha do tempo, a respiração das árvores acabaria numa cinza ligeira e rosada. Nuvens de fumo com a mesma e completa inexatidão.

Contos Publicados na Antologia  EscritArtes 
 "A Arte Pela Escrita IV` (2011),  Editora Mosaico de Palavras- Portugal

domingo, 15 de dezembro de 2013

Depois do céu




Estro
Há um Silêncio enorme em nós que nos chama acenando, e a entrada neste Silêncio é o começo de um ensinamento sobre a linguagem do céu. Porque o Silêncio é, em si, uma linguagem de profundidade infinita, mais fácil de entender porque não contém palavras, mais rica em compaixão e em eternidade do que qualquer forma de expressão humana. Não há nada no mundo que se pareça tanto com Deus quanto o Silêncio.” - Mestre Eckhart de Hochheim

Não sei se fecho os olhos reservando-me num ruído onde os casulos não vibram. Sou uma canção que navega impérvia na espessura do limbo, uma erva errante que sucumbe sobre as pedras, isenta da sabedoria das vindimas e dos favos. A angústia é uma grade invisível, um anseio por gotas e fogo que me desarma. Com esse diminuto par de luas quero silenciar o incêndio, a água, os fins, o eriçar das épocas. A voz do que amo é um sorriso, um salvamento que se dissipa para desordenar-me. Minha pele é uma canoa que guarda o momento de ser nascente e rio e mar e foz. Algo é brisa e é renúncia e esquecimento ou vício em meus azuis anúncios. Desejo ver na minha nudez a serenidade que cobre a fuga, o jejuar da palavra, a migração das mariposas sem destino. Ou ninguém. Angelical e temporário, persistente como a juventude, como o sol que se recolhe numa pausa sem pálpebras. Não me dei conta das escalas profusas, das perfurações que se desprendiam numa linha indevassável e quase definitiva, inquirindo-me impiedosamente, onde eu havia perdido o melhor de mim. Onde estive quando não estive comigo? Arrependo-me, mas não é suficiente... um pássaro sem murmúrios adormece-me o peito, como cios que não se findam, como a sombra que ilumina a estranheza difundida nas pupilas. Porque é o sol que faz girar a flor. Porque os olhos se acostumam com a luz e aceitam a circularidade retornando àquilo que precede e ofusca. Porque é necessário ser todos e nenhum.


Depois do céu
Ele [Deus] é a riqueza em profusão porque é Um. Ele é o primeiro e o supremo porque é Um. Por isto, o Um penetra todas e cada uma das coisas, e permanece Um, unificando o separado. Por isto é que seis não são duas vezes três, mas seis vezes Um”. 
Mestre Eckhart de Hochheim (1260 – 1328) 

“Tenho todas as faces, sou todos os rostos que desconheço. A palavra não se perde no candeeiro do horizonte e é sempre outra palavra. E tem faixas e agulhas lúcidas sobre o fervilhar azul da pele, o calor glacial dos nervos. Quando enfim se reconstituirão os meus ossos em nódulos robustos beijando-me como estrofes de orvalho postas num piano ou as tranças de uma rede perdida num sorriso ondulado... numa quase amnésia do vento, elã.”

Enquanto dormia despertou, e viu que o amor era somente o amor.

“Arrisco a riscar o chão, coberto por flocos de solidão.”

O que lhe sombreia os ombros são os imensos letreiros arrebanhados nas restingas rudes, nas arenas vazias, são dorsos que destoam o drama das coexistências, os volumes e tramas dos vincos e vivências, intenções desmaiadas no encalço arisco do que se ausenta e persiste e desencontra o tempo que soçobra nos movimentos e assoma em constelações supérfluas, em brilhos escuros que suplicam o arrematar das chuvas, dedilhando deidades e ferrugens, um sol resplandecente para ouvir-lhe a arte que arquiteta nos resgates das analogias e das contenções. Sabe apenas uma pista de si: “Hoje fui a asa que não tive. Meu quinhão é a incerteza dos dias. Por saber a pássaros e prolongar-me neles.”



Agradeço ao Pipol pela Publicação destes contos no Portal Cronópios:

sábado, 7 de setembro de 2013

A Cuidadora de Fontes


A Cuidadora de Fontes

Mostrou o olhar como a orla de uma partitura, tornou a guardá-lo sobre as pálpebras. Semeava-se fragilmente num ondular castanho, como se beijasse seixos marinhos. Seu destino chegara às areias flagrantes que a observavam. As linhas à mostra. Insistentes. Teimosas.

Histórias não contadas lhe serviam estrelas de alquimia aprimoradas a cada cerzimento disseminado pelo espírito inquieto – eram tão perpetuados aqueles poucos raios de luz a balbuciarem o desejo por mais luz.

A investigadora de palavras era a colecionadora de conchas e a colhedora de flores; uma página a tornar-se fértil. “Não tenho o mar nos olhos, mas tenho os olhos no infinito.” Algo pousou em seu peito ensolarado, suplicando para que não acordasse a sombra. “Não tenho nos lábios as palavras; nem a minha alma é a linguagem.” Resumiu-se no zelo esplendoroso de sabê-las inseparáveis de si.

Na desolação que passava ao lado, um convite sugava o nada deposto no que seria a proteção de galhos frenéticos antes de exaurir-se o que imaginara maior.

Uma borboleta amarela vigiava as flores de romã – os frutos amadureciam invariavelmente em dezembro. A cultivadora de frutos, uma impossibilidade realista, talvez existisse para que não deixasse de existir a compaixão. Desapareceu no seio do pomar que a confiscava, desbotando no irrecuperável pendor de quem não configura sementes em qualquer terra.

De dentro da sala os trabalhos do ano anterior tornavam-lhe evidente a inércia involuntária. A forma tridimensional aferia rejeições do passado. Inúteis. Quisera ter agarrado com o silêncio das mãos a paisagem que a despertara, o almejado novo rumo desdenhado ao rigor dos próprios pés.

Que significado submerge do que brota para além do desejo? Transpôs a hostilidade azulada e o amanhecer corriqueiro lhe trouxe do exterior um inescrutável céu, como se a lua abrisse os olhos para iluminar-lhe o coro de nomes que preferia anônimos.

Como se dissipara repentinamente a crua sensação de felicidade que estivera consigo? Sobre símbolos febris recostou o destino de não ser comum sendo habilmente igual à maioria, ainda que para filtrar a mesma vibração ou, de alguma forma, integrar outros horizontes – tão inequívocos quanto era verdadeiro o madrugar despertando o desconhecido – retomando ordens revestidas de extremada bravura.

Assim como não há ferida que resista às cápsulas do que passa, algo inexplicavelmente atraente a retornaria à Flowoers Street. O número não era compatível com quem estivesse só. Nem o andar. Nem o elevador. Nem as faces que a encontraram com aquelas personalidades. Tão ausentes. Todas estranhas e famintas de sal... Todas tão suas sem o serem.

Colheu mais um lírio em cujo perfume tentou adormecer. Depois um girassol. Colecionou insônias na mesma frequência com que vivia sonhos e conchas. Cultivou romãs por mais um tempo. Depois amoras, madressilvas, laranjais. Cuidou e investigou inexprimivelmente marés e nascentes. Depois mais palavras. Depois xícaras de chá. Depois a paz e a linguagem. Pelo resto do tempo: “que tudo possui.”

Do livro Entre as Águas -TT
Foto - lirios -TT

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Um resquício ou as folhas clandestinas


Um resquício ou as folhas clandestinas

Primeira carta: “Os dias se levantam com um gosto único de dias. Preferia um gosto que não doesse nem ferisse. Ando a esmo o mesmo e estranho caminho no raso em que se demora o desmando de ir. Os pés de ipê já floriram, a primavera se coaduna com pássaros de imprecisos trinados. O amarelo no fundo do meu olho é apenas o sol habituado a expulsar a marca de um presente que embora rejeite não posso modificar. Fecho a névoa, a que abrirá o coração cioso e distante que acalenta tantos mundos – acima da fragilidade há os temores findos no segundo em que encontro a inexprimível liberdade de sorrir o conforto das horas.”

Há como enfrentar os sentidos sem cortá-los ao meio? Se a imediata compreensão é possível também é provável refratar um pensamento com outro. Nunca vi a voz que andava de sapatos novos. Não a conheço. Mas é como se a conhecesse. Alguém a descreveu numa outra carta que recebi: “...reside num país distante, é humilde e rica, faz teatro, e, embora às vezes pareça beirar à arrogância, tem como principal característica o rosto angelical e a alegria contagiante.” Escreveu ainda – e não fosse isso eu estaria menos confusa – num Post Scriptum: “consigo meus próprios sapatos e, pelo prazer de andar descalça, há sempre novos pares a minha espera.”

Querida Clarice, em sua homenagem a luz que chora a hora da estrela aprende a viver sua eternidade e a descoberta do mundo se debruça em saber como nascem as estrelas. A bela e a fera ensaiam mais um sopro de vida. A vida íntima de Laura (a mulher que matou os peixes) é quase de verdade, de corpo inteiro. Quando a via crucis do corpo lhe segrega sussurrando “onde estiveste esta noite” a sua felicidade ou liberdade clandestina transforma-se em água viva. Seu espírito soma-se a uma aprendizagem inovadora – o livro dos prazeres – como se desfrutasse continuamente de uma legião estrangeira, ponderando sobre a maçã no escuro, o lustre e os laços de família. Não é de estranhar que perto do seu coração selvagem sobreviva apenas o mistério pensante da paixão. Com atenção: Lispector.


Texto do Livro Entre as Águas by Tere Tavares
Foto by Tere Tavares

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Dentro ou ao redor do fictício


Dentro ou ao redor do Fictício

"A maioria da gente é outra gente" (Oscar Wilde)

Começara aquela manhã já em seu final com o firme intento de inscrever-se na admiração dos que a cercavam. Talvez por entender que sua obra era uma simples dádiva à bondade. Hester se preocupava em preencher sistematicamente seu interior de luzes e brilhos famintos de expressão – não importava o método.
Bastava servir-se de melancolia, um destino mal vestido, mal tratado. Às vezes, era como uma testemunha fitando algo impossível de confiar a alguém – o que não lhe coubera conquistar. A privação era também um alívio, incontestavelmente persuadível.

Não era necessário contemplar o espírito nômade recém chegado firmando-lhe um vestígio concreto de felicidade diante da etérea escuridão. Obedecendo ao que lhe ditara o coração repassou a torturante certeza de que não poderia retornar ao lugar de onde não há retorno.

Sob o céu reluzente e apesar da aridez forjava um novo intento. Na suavidade da noite impregnava à imaginação o prazer de ultrapassar o desconhecido, o furor inenarrável de criar. Busílis. Eis aí.

Os bosques pareciam uma ordem renascida, uma cantiga de estrelas irredutíveis. O impermanente, as malícias e álibis, tendo à direita e à esquerda o agora, a resplandecência de venerar as inevitáveis brotações do sentimento.
Repercutia, ao tocar, com as suas, outras divisões gravadas em filigranas de infinito, encerrando o que tivera no dia anterior e ensinando-a a não programar o próximo.

Texto do livro "Entre as Águas" By Tere Tavares
Foto By Tere Tavares

sábado, 20 de julho de 2013

Do sal à água ... em multidão


Do sal à água  ...em multidão
De quais orientações me despem os oceanos para se espelharem no espaço em que adormecem e se acumulam as ausências dos meus inícios?
 Ali, onde o óleo perfumado é leito e as armaduras se distribuem em vôos de fantasias reais, se despedem os meios-tons do silêncio de haver mais por regredir, (cá do meu canto sem encanto finjo não chorar cada momento amigo da distância).
Amparo-me em âmagos-motes, povoando um único instante: ser mar e areia confluindo entre margens de oásis. Quando então intuiria que tudo se dota das mais estranhas singularidades?  Seria meu ...ou eu esse mar, essa sereia, onde recolhida em saudade, peso  menos  que o opaco horizonte que me deseja enxergar. O que serei dessa fração não minha, crispada de ventres, sabor e alma?
A cada final de aurora em que recolho o que gostaria de nutrir por muito mais tempo, num ínterim que escapa de um céu iridescente escorrego nalguma rua imaginária, salpicando sinais aos imprevistos que me impulsionam para fora de mim (o algoz tão próximo) as muralhas adornadas de pombas, a coragem flutuante nos ramos de acácia.
Lago do papel que não me ilustra, afago o ocre dos papiros impressos nas orgias outonais, nas cumeeiras das casas à minha frente, dançando em colunas rotas de ternura.
As ilhas de sal que ficaram ao longe me perpassam o corpo com aparições de vidro. A doçura, nívea, se torna compulsiva e me dá uma possibilidade única de vislumbrar-me maior que a felicidade, pecadora ou angelical, quem me implorará sentires nunca experimentados? Dedilho vagarosamente no meu ser a feição mais cúmplice, o jeito que não descrevo.
Como um traço corrompido a lançar-se num abissal infinito, com véus de alguma estrela diversa da minha ousadia, opto,  sabendo que já opção não me resta, pelos mais salgados sais ... sem razão, perpetuo o desfiar dos relicários,  relatos pálidos de ostras, renascendo rapidamente em outra intrusão sem dia nem tempo por acabar... Se partirem-se os meus opostos, acoberto-me na própria engenharia do exercício que me constrói sem dar conta às renúncias por verter.
Obtusa, replanto lírios recolhidos de águas e salinas, muitas outras vezes, apenas para reconhecer o gosto de gostar-me. Com a alma espiralada na praia, a magia do meu regresso se redobra, porque simplesmente não suponho conformar-me em nublados resumos de mim ...como se não conhecesse o pranto  ...o sol insufla-me a carícia do calor em buquês de vinho enquanto o vento, em ziguezagues, me sublinha  a testa com mais uma de suas veredas.
Do livro "Entre as Águas"  By Tere Tavares
Foto By Tere Tavares



quinta-feira, 20 de junho de 2013

Nas divisas de um campo

Nas divisas de um campo

No es bueno quedarse en la orilla...
Sino que es puro y sereno arrasarse en la dicha de fluir y perderse,
encontrándose en el movimiento con que el gran corazón de los hombres palpita extendido. (Vicente Aleixandre)

Com a saudade adormecida no colo pensa não ser considerável retomar o caminho. O silêncio lhe entorpece a solidão do corpo, da alma. Um naufrágio vive preso em seus pulmões. Balbucia qualquer coisa, inquieta-se, e novamente se tranqüiliza. Os estagnados não criam alegria nem beleza. Tampouco servem a um maior objetivo. 

Ainda não detinha as rédeas do coração. Apenas se perdia em seus labirintos de emoções – alguns saneados e reconstruídos, outros em ruínas, com abrangências cada vez mais profundas e insaciáveis. 

O que aparentava ser simples de abandonar sem qualquer apego agora se tornava um aglomerado de situações insípidas. Não havia nada que soasse verdadeiro à sua fatal compulsão por novidades. Ignóbil. Julgava-se, mortificando a si mesmo sem que o tempo o soubesse, como se aos poucos pudesse recuperá-lo. Quanto daquilo tudo não era sua própria sombra às costas do mundo? 

Tocou-lhe os cabelos levemente para não despertá-la. Só naquele instante admitiria, recusando o inevitável revés, que não adiaria por coisa alguma a sua nômade natureza, exultando a verdade, fora de si, sem nenhuma noite para segui-lo.

Foto e texto By Tere Tavares

quinta-feira, 4 de abril de 2013

A dor me ser


A dor me ser

afundo a mão entre as águas 
trago seu remanso sobre o meu não saber delas
para recortar a lâmina úmida
acredito que haja um assovio 
na lágrima que é lume sombrio 
tremulando como alvéolos 
teares nas chaminés do campo 
quando a noite se enfraquece 
no cio das aves
outro é o pão que alumia o dia
argila que se molda uma única vez
agora são rios os raios que se aquecem no frio 
e se aconchegam e se verbalizam no silêncio 
– nada diria para que continuasses a dizer
tantos voos suspirando nesse vazio 
onde a correnteza é o lar grave da margem
o anseio da ilha  – que me reste somente 
o que consigo beber dos seus leitos breves, 
como um círio raso e único...
quando a guarida é remo e rede, 
quando não me disfarço de mim - sonrío.


Tere Tavares


em
Debaixo do Bulcão poezine
n.º 41 - Março 2103

sábado, 2 de março de 2013

Minicontos




Som

Esquecera há quanto ocultara na falta de tempo as leveduras do pó e seus milhões de ouvidos. Abriu o compartimento de onde viriam as notas. Um clique. Debussy. Massenet. Guardava o som na memória que esquecia títulos, composições. Só a melodia a vagar o sentido que não oblitera. A leitura disforme e veloz como as mudanças tecnológicas. A fome por som continuaria somente até a segunda idéia navegar a distância da aproximação, portas presentes. Meditação para Thais e Clair de Lune. Viu partituras. Ouviu piano, violino. E segregou-se no retrato de um homem que possivelmente teria amado.



Em cruz ilhada

O palco era composto de quase nada. Dois bumbos, um violão, um
órgão eletrônico e um cantor. Nunca se soube a cor da face ou o contorno dos olhos da companheira que não o acompanhava – uma dócil utilidade afeita a jamais passar das frestas. Obra do cantor ou do conformismo de um destino, de cuja voz e sorriso pendiam seus cabelos desprotegidos, a sua boca delineada pelos murros da percussão. Enquanto a platéia, dividida e surda, aplaudia num quase silêncio a expressão mezzo-soprano, nascia mais uma heroína morta.


Ambição

O corredor da sala ficaria com o azul rosado, o quadro das embarcações. Para o quarto distante e agora mais feliz levaria as tulipas aquáticas que antes eram da sala. Na onda embranquecida pela violência do mar já se haviam dizimado os motivos do choro. O coro de lamentos sumira no lume da primeira embarcação – máscaras e caracóis vestidos na véspera. O vazio prenhe de elipses entre decisão e ardor, ascendia num horizonte lívido de silêncios sem voz. Quisera correr e agarrar-se aos remos com os braços fortes de outrora. Quisera haver ainda sais para remar a vontade de parar.

Opulência

Era uma mina de diamantes. Ganharia quem chegasse primeiro. A preciosidade pertence aos bem lapidados, e só lapida com perfeição quem ousa conhecer o ruído das coisas. Pedra a pedra fora buscada como se estivesse próxima. Daquele diamantário viria a lembrança tão árdua de guardar quanto era rija a certeza de ser um tesouro só seu. Tentou em vão atinar o caminho de volta para o rio. O de antes. O da inundação que espelhava dentro d’alma, continuamente, bruxuleando em aquiescências fugidias. Tão similar às jóias dormidas por fora da sua insônia – à fração de censura que se permitia.

Debrum

Revestia-se humílima no breu da razão onde esmigalhara vertigens irresolutas, esmiuçada no equilíbrio de uma desordem no fio dos lábios exultando um ontem mínimo e indispensável à perfeição do hoje, hígido, servil. Estremeceu a voz numa hiperbólica vigia “ah se não fosse se não viesse se parasse o que possui dores”. Via no branco espalmado apenas a liberdade feita de algemas. “E esse céu que se vai tecendo num fulcro de impossível”. A fadiga solúvel, uma fragrância irrecusável de alecrim e calêndulas – um gesto súdito a reveste derramando-lhe um cetim consútil – sua noite de pêssegos.

Eco lógico

O peso do elo pode não ser um pesadelo. Na urgência que tem para que o tempo demore já não demora nem retorna à raiz a árvore que cai – apenas o corte finge que o cinge quase esquecido do seu gosto de nozes. Como uma película de lagos entre os braços tinha para si a modorra que movia. Sequer existia. Rodava nas horas que imaginava. Ramagens. O cansaço não adormecia nem o dormir acordava. Uma angústia exausta não aceita ordens; quer exaurir e o faz tombando de forma macia, sem a tristeza de não dar arborescência ao próprio reflexo.

Açucena

Uma forma de driblar a solidão e derreter as coisas que fermentam, erroneamente refreadas – deixar um pensamento para depois é correr o risco de perde-lo – já não ousa correr riscos nem deixar de correr porque o tempo tem pressa. Aprende a falar sozinha para não desaprender a falar, perde o apetite na proporção que lhe cresce o pássaro do peito entre roupas sujas e ninhos limpos. Quer olhar coisas onde coisas não há para estreitar ...caça às escuras, entre simbioses e moedores de letras, algo que aproxime a distância entre os abraços. Do vôo suprimido de asas vê o vácuo, bebe o céu. Seu sim.

Sadhu

Ao optar por não-dizeres guardava surdamente a dor que os substituiria. A vibração foi demasiado contundente. O dia que se seguiu era como outro qualquer – caminhava entre nuvens, numa construção solitariamente muda, evitando o esquecimento escaldante que parecia querer queimar tudo o que estava vivo. Quis salvar os olhos. Há tempo as ruas não imitavam seus movimentos. Tudo vive, ainda que pereça. Como ontem. Quando mesmo entre um cárcere e outro, ao entender o sentido de ser só sem ser solitário, não deixou de escapulir, magnanimamente iluminado.


Oitenta-e-Oito

Do vôo entenderá quem não é alado? Magister dexit. Alimentava-se dos frutos desprezados pelas árvores. O número circunscrito nas asas brilhava mais quando pressentia a implacável caçada. O abdômen preso a um alfinete, as cores e a silhueta sem a vivaz perfeição de antes. Pensada inesgotável e sem memória a Diaetheria Clymena seria capaz de esquecer os que lhe haviam provocado a quase extinção em troca de haverem eternizado a forma com que os fez sentir – porque adorava a luz e jamais tinha certeza se testemunharia a próxima alvorada.


O Alienista

A perspicácia o faz ainda re-ver algumas provas. É agradável o deslindar dos pensamentos à sua frente. Fragilmente forte não reagiu quando bateu a chave com força e fez cair a porta. Talvez se assemelhasse àquela fechadura muda que lhe abriu o chão para vê-lo enrijecer o esquecimento de todas as coisas que por insegurança o fizeram útil. Um exclusivista ligou para ser ouvido. Quando quis fazer-se ouvir “só um minuto” não teve garras – seus ouvidos eram os erros da casa – os labirintos de Borges.


Ver-te Vertente

A página não é suficiente para que se firmem os olhares. Todos se fecham diante do sofrimento. Não entendo porque não possuo a mesma cegueira. Não sei onde sou eu nas coisas que não vêem. Para que presságio ou desentendimento irá essa compreensão que não sinto? Exerço uma nota de brilho. Nenhum papel. Cada partícula de mim se alimenta dessa possibilidade de sonhos, talvez soprados em realidades atemporais onde prevaleça algum retalho esmaecido e sem orgulho, quando serei o fragor composto por quem já ousou sem a consciência do medo.

O menor de todos

Eu visto outra pele sem ser a minha alma uma pele que visto. Não me escondo senão por uma timidez ou um desejo de ser o nome obtuso estreitando livremente a ameaça de mostrar-me. Como se nunca sucumbisse a luz errante da sombra. A confiança erra ao não ter compaixão. Vale a pena sonhar, me antever quase totalmente arrependida nessa terra estranha que se tornou a minha figura. Minhas fotografias são essas palavras, e algumas palavras são sapos. Não há sentidos feios, apenas almas. Não há palavras feias, apenas sentidos. Papel de bala.


Órion

A pretensa ilusão de que as coisas ao redor deixam ou continuam a existir, apesar de tudo, sobre tudo. Crer no espelho quanto é possível a crença em si mesmo – não é outra a imagem refletida – o cognitivo compele à saciedade, (ou pelo menos deveria), para melhorá-la, sem objetar modificá-la. Quanto há que acobertar ao testemunhar autor e obra não sendo senão outros, sós, ungidos para girar, deambulando entre um e outro floco visionário, presos ao mesmo cordão, desprendidos e naturais, mergulhando onde nenhum tesouro parece estar aguardando-os.


Mata

Num oceano de folhares o néctar vive com o trivial cerne da comoção. Quem nunca teve uma grande ferida para saciar? Toma a sua cicatriz aberta e desperta do que não é, em absoluto, um pesadelo, um caule impoluto. Uma foice cruza o último solstício tropeçando sem saber se ainda serve aos admiradores da resistência. "Melhor se não vivas" diria a teimosia peregrina ao luto das ramarias. Talvez um imbecil soubesse de matemática quanto sabe a sorte do semeador. “Não julgariam se me vivessem; sou uma eterna grade, herdeira sentenciada pela casca que me veste como quem despe”.


Enlace

Houve um estranho momento em que cheguei antes do nada. Era um perigoso fragor de manhãs de circuitos únicos, suavizados. O indelicado sabor da loucura ia-se distante. Sem deixar impressões ou memórias dúbias. Dobrei-me diante do luar que balbuciava distante enquanto tudo ali estava. Ou restava, em janelas obscuras e desregradas cortinas. Vi-me a balançar em pequenas redes de nuvens, claras como o sol. Surpreendi o poema a fazer-se rosto, dourado, irresignável. Mostrando-me onde residia o que faltava.


Pilha

Ando apática de sentimentos. Talvez porque experimento ser mais feliz do que sempre fui, mais inerte do que julgava. Não folhei o volume que menti que leria. Nem me interessei por quem o tivesse escrito. Perdi-me no seio das folhas dos filhos renegados. Óbolos recolhidos humildemente em seixos e areias antes mares com restolhos de ostras e mariscos. Madrepérolas inquisitivas se tornaram adornos no meu corpo esquivo. Minhas primaveras parecem pobres para resgatar o livro de névoa que voa lá fora. Então digo à velhice das horas diminutas salinas vindas de dentro, marés vertidas em silêncio.


Ductilidade

No meio do bosque, drusas e ametistas ainda se decidiam por derreter a escuridão. Como seus olhos de cristal quase verdes, quase mares. Comprou um anel de três pedras e o colocou no dedo médio. O seu vestido rodado marcado na cintura, decote discreto, da mesma cor de ágata. Dançou mil vezes no tapete das deusas, sequer sentia a leveza do corpo entregue à cegueira da música. A vertigem do desejo caia-lhe do rosto. Não erradicaria sua herança de pedras. Devolveu um sorriso sem cumplicidade ou promessas. Não gostava dos ocasos cor de areia.


Alvo

Teve certeza que o egoísmo – sentimento tão absurdo e horrendo – poderia vingar-lhe sobrevivência. Relutou. “Vou pensar em mim”. O inferno são os outros – esquecera, é mais fácil lembrar do sentido do que do autor que o desencadeou – Sartre teve a felicidade de aguçar em três palavras uma grande verdade humana. Talvez um livro secreto o tivesse incumbido dessa fagulha de eternidade da qual não havia como não concordar, exceto pela ínfima razão de que o céu existe porque o inferno existe. O que cabia, talvez fosse aferir com terrível exatidão o caminho do meio sem ser um Einstein ou um Da Vinci.


Dom

Hoje o normal virou-se e disse um olá. Na contramão o inconfesso quis aproximar-se e temperar o sortilégio mental da sua preguiça. Soube apenas do portão aberto ao toque inseguro, agilmente determinado. Ao chegar não perscrutou perguntas, preocupações ou suspeitas. Depois da pausa o recomeço; é assim sempre, ou quase sempre. De definitivo só o presente com o que há de definitivo. Interrompe o silêncio que agora se instala para outra pausa igualmente silenciosa. A beleza inaugura o que a contempla como um menino recém acordado. Deixa-se ficar – em nome da arte quanto em nome de Deus.


Minicontos do livro "Entre as Águas" 2011 by Tere Tavares
Desenho "m-eus outros" grafite e nanquim by Tere Tavares
Publicados também em julho/2013: http://diversosafins.com.br/?p=5151
Publicados também em setembro 2013http://www.germinaliteratura.com.br/2013/tere_tavares.htm