sábado, 19 de março de 2011

Almas


De onde a intensidade do brilho captará toda nudez das emoções.

Eu estava sobre uma toalha branca de fino bordado. A mesa sustentada por colunas de madeira, onde fora esculpido um feixe de trigo, um peixe dourado, um cordeiro de olhos mansos, folhas de oliveira e um cacho de uvas azul escuras. Um livro grande de capa marrom repousava numa estrutura de metal entre os candelabros e as constelações de pétalas.

Chegou. Como se fosse um ser de espécie desconhecida. Serenamente calma pela benevolência do sol que a aquecera permitia-se estar ali como se flutuasse, sem preocupar-se com nada. Agradecia à sua forma sorridente, que mesmo sob as mais inescrutáveis provas, conseguia não deixar exumar-se. Os cânticos eram acréscimos indulgentes aos ritmos próprios. Misturava-se à brancura dos castiçais e cálices ofertando o que tinha de mais sincero, permeando um depositário de anseios e graças alcançadas. A jovem mulher era comum, talvez mãe, e parecia que nada viera deixar ou buscar senão o bem de expor as extensões da vida, o mistério de existir, a força venerável da introspecção.

Percorreu as paredes. Havia nelas outras esculturas, retratando o mesmo homem em diferentes situações: tendo ao seu lado alguém que lavava as mãos, alguém que o ajudava a carregar seu fardo, uma mulher de longos e negros cabelos a beijar-lhe os pés. Gostaria de não dizer que viu o homem crucificado na penúltima. Na décima segunda ele aparecia entre nuvens e figuras voláteis, transparente e rutilante como um anjo.

“Bem aventurados os puros de coração porque verão à minha face, os pacíficos porque serão chamados meus filhos. Vosso pai sabe o que vos é necessário antes que vós lho peçais. Eu quero a misericórdia e não o sacrifício”. Cada palavra que auscultava era revolvida e tacitamente abnegada.

Segurou firmemente a mão da menina ao seu lado. Pousou uma carícia leve em seus cabelos anelados, nutrindo, fazendo crescer o sentimento como se lhe arrancassem uma porção cada vez maior da alma e findassem por subtraí-la totalmente. Confortava-se corajosamente para assumir a mais bela vitória, por mais morosa que parecesse, haveria de culminar no objetivo concretizado.

Um entrelaçamento carinhoso onde a eloqüência do amor não sucumbe à indiferença que reserva tão pouco de nobre, algo que seria mais do que uma referência de bondade uniria aqueles dois corações mais fortemente do que nunca. Uma frase fraturou a mudez e cobriu o chão: “Um pacto vos fita do alto”. Nunca mais foram as mesmas. Também não retornaram.

Por cerca de dois meses eu permaneci ali. Minhas pétalas se foram e com isso ganhei o jardim amplo dos fundos. Duvidava, com tristeza, que fosse possível renascer no meu novo lugar. O tempo foi passando. Fui regada e cultivada com esmero. De mim brotaram duas mudas muito verdes que alguém deitou em vasos de fibra de coco.

Busquei toda a energia das estrelas para tornar-me ainda mais exultante. No ano seguinte, já em forma de orquídeas florescidas, servi de presente a uma família. Realcei os recônditos da nova casa com todo idílio do mundo. Entre as roseiras avistei a mulher e a menina novamente como se fossem filamentos de mim mesma, revolvidos num espelho.

Foto- Tela "Caminhos" - TereTavares


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Ainsa

Ainsa




Sentiu-se ínfimo. As dúvidas lhe escorreram pelo rosto. Não foi a primeira vez. Provavelmente também não seria a última. Que culpa haveria num ser que não se preocupava somente com o próprio curso, atendendo ao que não conseguia estagnar?

Não tinha pretensões, absolutamente nenhumas. Logo ele, tão simples, cordato, altruísta. Não se deixaria abater por nenhuma ilusão desocupada. Não sabia se tinha amigos ou admiradores – talvez amigos e admiradores fossem vernizes de uma tonalidade diversa. Solitários. Sumamente necessários.

Caminhava resoluto, como se provasse uma paz recém colhida. Felizmente “o enfeitador de paredes” não se havia esgotado. Arrematou o último exemplar. Identificava-se de algum modo ainda não descoberto com a obra e com o autor.

As dúvidas deixaram a face e ganharam o ar. Subiram nas árvores, pousaram na tepidez das folhas. O mesmo verde da cor primária. Não prosseguia de outra forma que não fosse a de apaixonar-se continuamente pelo que acreditava. O que poderia doar a todos. Seus momentos carregados de eternidade. O semblante único. A esperança insólita que lhe brotava na pele sem perder a alegria de germinar.


Foto da autora

sábado, 22 de janeiro de 2011

Queda de Barreira

Queda de barreira

Desta vez não haveria premeditações. No seu caso o hábito desafiaria o monge. Algo como sofrer sem recordar a causa do sofrimento. Não olharia para trás. Anseios e sonhos não permaneceriam adiados por motivos banais. Sorrir falsamente ou proferir amenidades para satisfazer quem quer que fosse também restaria abolido. Se procurasse um ombro amigo não seria para depositar nenhum desespero insolúvel. A todos que amava, mesmo não obtendo nada em troca, continuaria a dar o mesmo amor, sem objetar modificar ninguém. Sua cognição é que deveria se deslocar. A felicidade é, antes de tudo, um ato de coragem. Ofereceria somente o que de mais augusto o habitasse.
Cobrou tempo aos contadores do tempo. A nebulosidade era constante. Durante vários dias de um verão inexplicavelmente frio e transbordante subiu a estrada recortada do mapa com a neblina embaralhando-lhe as têmporas. O jornal fora esquecido como todo o resto. Nem livros. Nem almíscar ou amuletos. Nem senhas ou senhoras. O perfeccionista caótico também morrera sem vasculhar o que deixara de seu na intrusão dos significados.

Vestígios entrecortados de um grande corredor sumamente rico de plantas confidenciavam-lhe janelas com cantos de pássaros irreconhecíveis; nuvens claras margeavam a limpidez do céu. Estrelas longínquas e montanhas intrépidas se agigantavam ou diminuíam conforme a amplitude do olhar – coisas infalivelmente perdidas, em desuso. Um pequeno paraíso filtrado pela mata atlântica, a Ilha Feia era de uma beleza sufocante. Faria tudo para alcançá-la. Enamorou-se dela, primeiramente de longe, imaginando-lhe os lugares, as espécies e a paz replicados do entorno e do interior, ainda inexplorados por ele. A inusitada porção de universo deveria esperar mais algum tempo pelo infatigável viajante. Chovia muito. Voltava a chover. A casa o abrigou como se soubesse tudo a seu respeito. A mobília mal distribuída o irritava ...Mas não ligou. Foi para o quarto diminuto. De paredes brancas e devassadamente nuas. Gostou das paredes nuas porque o incitavam ainda mais a viver apenas com o indispensável. Desceu acompanhado pela curiosidade enquanto saboreava um café, como se dialogasse com um desconhecido casual, tão absorto no que fazia ou tencionava fazer que mal ouviu os próprios monossílabos. Um lixo. A falta de afinidades ferroava-o como labaredas de fogo.

O subsolo não era exatamente o que o incomodava. A verdade ali ocultada não era suficiente para que prosseguisse. Algo que o comprometesse era imediatamente posto de lado. Do outro lado havia escuridão. Lampejos indesejáveis instauravam-se no monturo que em nada lembrava o vazio. Não existem sozinhos, nem a sombra nem a luz. O cérebro decodificou duas figuras humanas de aspecto ameaçadoramente mutável. Como um rascunho dentro de outro rascunho. Uma espécie de ilusão de ótica.

O mundo físico em si não está subdividido em objetos, e é visível da forma como a percepção o organiza. A imagem que a mente abstrai do que vê é volúvel e quase nunca tem como único fundamento a realidade. A informação instilada nos olhos converge com a que está cumulada na memória. O cérebro usa trinta áreas distintas para processar a visão – conforme a marcha dos astros, as variáveis cromáticas, a profundidade, a distância ou a perspectiva dos contornos. Juntos, visão e cérebro, simplificam as imagens, tornando-as mais compreensíveis do que efetivamente aparentam, muito próximas da exatidão. Essa simplificação, permite apreensões velozes, mesmo que dúbias, da realidade externa, de onde se originam as ilusões de ótica. De forma que o cigarro e o copo suspensos por aqueles espectros, de costas um para o outro, eram, além de inexatos, completamente abstratos.

Espantou-se com quanto se pode indagar da subjetividade. Retornou ao pequeno cômodo que lhe serviria para passar o resto da noite. Fechou a janela deixando apenas uma pequena abertura para a renovação do ar.

Enquanto isso montanhas deixavam de existir, exaustas. A mixórdia urbana vinha à tona ilustrando insuportavelmente cada recorrência das orgias climáticas, sua origem, causa e efeito. O fim do mundo. Todas as linhas de pensamento paravam e iniciavam nas catástrofes por opção, obrigação, conveniência ou ciência. “Eppur si muove”.

Nem tudo é propositalmente abandonado. Reorganizou as inquietações. O sol reapareceu com sua multidão de contrastes, turbilhões de almas e quinquilharias para dispensar. Nenhum pedido de socorro foi ouvido. Seu lado são os dois lados. Sublimadamente diferentes.

Foto da autora

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Horas internas de um passeio exterior

Com votos de um Feliz e Próspero 2011.

Acordei feliz,
saí para a rua.
De longe onde me via
passou um sopro cinza de bruma.
Fazia frio em pleno dezembro,
havia momentos onde pisei
a ânsia estreita e difusa da vida,
o bifurcar das arestas
numa paisagem nunca esquecida.

Se sonhava ou se dormia
-ainda não descobri-
escondi-me nas coroas do caminho
...que perfume vago riscava aquele céu
quase invisível
duplicado de mim
no tropeço das raízes
acima dos meus pés.

As romãs
prestes a madurar
combinando almas sem olhares.

Valia a pena então o movimento quieto
o anoitecer demorado e suave
a cingir-me incertamente.

O amor próximo fez-me pensar,
na altura do silêncio
como no sossego irreflexivo das fontes,
que não havia no mundo
maior felicidade que a minha.

Foto-romã-TT

domingo, 5 de dezembro de 2010

Minicontos - Publicação em Portugal


Garbo

Ocre, vermelho, verde, tons de areia e terrosos. Indumentárias coloridas, tramas do tear lavado a suor, o ashanti, o kentira, em desenhos bordados a pedrarias e pinturas, cujo fundamento e motivação se estendiam feito céus almofadados sobre o chão. Quatro mulheres em meio à plantação de milho e capim: danças a rememorar tempos onde nada era segregado em mundos ou deuses. Pés descalços, todas elas, como a solidão daquele espaço longínquo, fitando holisticamente a simbologia da criação. Seres singelos e esguios, sem máscaras, sem referir qualquer necessidade de auxílio. Religadas num cosmo de quase total liberdade. Com os braços a balançar as mãos compridas e fortes sobre as túnicas salpicadas de secura. Como se em seus semblantes amáveis e sorridentes se pudesse ver escrita toda a história – antes e depois de Soweto.
------------------------------------------------------------------------------------------------
No crepúsculo todas as cordas são pardas

As sutilezas do céu derramavam-se confusas no seu dorso. O cristal árduo e indefinível dos dias não declinaria de nutrir-lhe as veredas com os lirismos da Terra e a sintonia do homem superior. Irrompeu num porto revolto e destroçou o inalcançável para ferir de imensidão aquela ingênua intensidade. Um tanto disforme e irresignável iniciou um andar trêmulo e mortiço sobre as pedras que poderiam ser cães ferozes ou uma cidade quase sem escândalos. Não fora programado para crer na escuridão. Queria encontrar uma abreviatura em que coubesse como aquele pequenino. Apesar de ter-se transformado, o recanto da sua calma não se modificara enquanto esteve lutando – por uma nova máscara, por qualquer transição calada que se levantasse, ainda que momentaneamente, numa parcela de misericórdia e outra de segurança.
-----------------------------------------------------------------------------------------------
Textos publicados na coletânea "A arte pela escrita três" (2010) organizada pelo "EscritArtes" editada em Portugal pela "Mosaico de palavras editora".
Foto TT

sábado, 20 de novembro de 2010

Agre

A tarde orna-se de sombras. O frescor se desprende levemente de sob as árvores frias e vem morar na interrogação do meu rosto.

As horas caminham mornas pela rua dos mendigos, não apenas por ser a rua o único dormitório de que dispõem, mas, por representar o estado em que parecem viver ou sentir os nascedouros do infortúnio.

Nesse momento o sol quase fecha os olhos sobre a cidade e toda aquela vida. Corre entre as gentes um rio que agrega na mesma proporção que segrega. O egoísmo. O bandido. O legitimador de opções. O escravo. As construções disformes e elegantes esforçando-se para entender a desordem que advém da inexistência das coisas. Ninguém compreende as filosofias ministradas pelo odor da miséria.

As imensas procissões de letreiros especulam sobre quase tudo sem modificar a sensação de impotência. Inutilmente. A banalidade de haver visões e de haver ouvidos, não conseguem iluminar a geografia humana. Mas estão ali arrefecendo o aço escovado, as nódoas de néon, singrando o breu de sempre, incrivelmente igual.

As pessoas avaliam o meio mais seguro de não se tornarem totalmente infelizes. Talvez saibam que o desejo de ser feliz a qualquer custo traz invariavelmente o tão temível sofrimento.
Divagam entre a vitalidade e a capacidade que possui o intelecto de afastar a melancolia e transportar sensatez às minúsculas sensações de bem-estar infinitamente maiores do que qualquer abstração que possam comprar. É legítima a própria satyagraha – insistir pela verdade. Shanti. Talvez nada valha além desse intacto argumento.

Como súbitas batalhas o suor dos pensamentos escorre sobre esses estranhos destinos que me acompanham. De qualquer modo vale a pena deixar-me seduzir pelo que me retira de onde estou.

Com o tempo, sabe-se a abrangência e a nobreza de não subjugar-se ao vulgar, à falta de sutileza. A ansiedade se esfacela e o silêncio retorcido é uma doce tortura. O demais é a demora despindo o engano, a redenção de mais uma inerte alegria que nascerá – Shantihi.

Foto da autora- Ipê

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Antologia Blocos On Line - Mares, Lágrimas e Outras Águas



Entardecer na cobertura


para ariel tavares


o vento sopra nas coroas das palmeiras
o sal do mar se infiltra em todos os lugares
da pele à raiz dos cabelos

a noite diz boa noite mas não promete ser boa

haverá ressaca e a maré alta trará consigo
tudo o que puder arrebanhar

o braço da maré não é feito de moliços
nem de ossos
é feito da força líquida e invencível das gotas

o vento alucinante prospera
e a lua sopra suas mantas prateadas
então sobre as areias antes brancas
há manchas
nuanças de breu
daqui de cima não vejo tudo
embora escute o que imagino
o que me diz esse eu
desdizente

para ti, minha bela flor de caracóis
sob o teu regaço de moça
o sargaço dessa mãe
extrema e nunca ausente
que te sente
porque te ama.
Tela da Autora -Praia do Coqueirinho-2010
Nota: este, entre outros poemas integram a Antologia 
Saciedade dos Poetas Vivos Digital - Vol.11
do Portal Blocos On line. Para leitura do livro basta acessar:
http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/saciedigpv/11/capa11.php
http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/saciedigpv/11/tere01.php

sábado, 9 de outubro de 2010

Sal da Terra Luz do Mundo e Cronópios - Publicação

Bom dia amigos,

O conto "Ainda sobre margaridas" foi publicado no Portal Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4763
e também no site da Ana L. Vasconcelos Sal da Terra Luz do Mundo:
http://saldaterraluzdomundo.net/literatura_contos_margaridas.html
Partilho com voces essa dupla alegria!
E antecipadamente agradeço às leituras e comentários.
Desejo-lhes um ótimo final de semana!

Tela da autora - "A estrada de Alice" -2006

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Por Outro Lado

Por Outro Lado



Debrucei-me sobre "a sombra das moças em flor". Não seria a primeira nem a última vez que me encantaria por Proust. Antes de revirar suas frases fluídas, havia visitado alguns pontos, quase sempre os mesmos. Mas o meu espírito não. Nele atuavam as estrelas caídas. As entonações de prestar atenção. Postou-se em si mesmo - o lugar seguro e reconfortante - e dos silêncios suntuosamente murmurados, disse-me algo do seu conhecido segredo. Eu não tive medo e ouvi. Também vi, tão logo cessara o que havia mudado. Emudeci, mas somente por fora.


Naquele solfejar deixei descobertos os ombros e os braços. Todo meu ser era outro a dar-se a conhecer. E me encantava. Sem mais nem menos. Eram as individualidades interessantes de alguns costumes insensatos. Apresentei-me como sempre. Sem distrações. Sem os nadas. Em branco. Assim como Freud, não obtive sucesso (nem teria tal pretensão) ao tentar desvendar os mecanismos inextrincáveis da mente – a minha, a de toda a humanidade que há milênios desafia os mais ferrenhos estudiosos.

Autoconsciência, ego, self, deixaram de ter uma necessidade para tornarem-se uma realidade. Ainda que obscuramente nebulosa. Filtrei as diferentes noções e verdades aparentes. Pus-me a caminho mais uma vez. Desta vez com o corpo todo descoberto.


Tela da Autora -óleo sobre tela-l980

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ainda sobre margaridas



Ainda sobre margaridas

Mesmo vivendo em lugares difusos e distantes andam de mãos dadas. Na mesma proporção com que adoram buscar o conhecimento criativo despertam em si mesmas sentimentos aparentemente incompreensíveis. Uma se disfarça numa flor de plástico, outra se confunde com a Lua e outra é uma receita de doce caseiro. Aquela que se disfarça numa flor de plástico muda de nome a cada novo humor do próprio temperamento, e não se reveste de nada notável. A que se confunde com a lua tem um brilho mais intenso, nem por isso menos ofensivo, talvez por dominar três idiomas e viver na terra dos bem nascidos. A receita de doce caseiro sofre de sérios conflitos existenciais, aparece e desaparece resumida em desconfianças e, embora saiba que é impossível seguir o que não tem importância, faz questão absoluta de evidenciar alguns rastros.

A flor de plástico não se perdoa por ser incapaz de jogar um pouco de originalidade no fluir do curso. Fugaz, a consciência da receita de doce caseiro não está a serviço da felicidade, embora tente, paulatinamente, aludir a algo bom. A que se confunde com a lua contenta-se em distrair-se navegando em delirantes volições. Sem qualquer aviso a flor de lua assume que também se confunde com a receita de plástico e muda de identidade mais uma vez. A que se confunde com a flor de doce caseiro descobre um parentesco camuflado com a lua de plástico, adota o nome da manhã anterior e cai enferma. A flor de doce caseiro desaparece dentro da lua de plástico e da receita de lua para retornar um tempo depois usando uma pele invisível. A flor de doce de lua de plástico caseiro que se confunde com a receita de flor de doce de plástico de lua decide que é imperioso descobrir a intensidade dos seus desejos e conclui – são clareiras obscuras, entropia.

De uma suposta insônia aparece uma quarta, bem mais jovem, de personalidade igualmente indefinida. Ela se debate sobre a textura e a visibilidade dos mistérios compreensíveis. Nada define acerca das profusões intranqüilas que lhe provocaram o nascimento.

Na equação incerta do que vivem ou julgam viver as pobres almas não ultrapassam o que aparentam – qualquer coisa que se perde ao acreditar no imutável.

As quatro se apóiam numa quinta-essência de mãos delicadas e igualmente incógnitas que as tranqüiliza, ao menos por alguns instantes: “Quando a solidão é minha única e insustentável esfera são vocês os conselhos que estabelecem interlocuções comigo. O que deduzo, na verdade, são fragmentos imperturbavelmente mentirosos que me seguem – incessantes. Tento encontrar-me, e a tudo o que é humano ou divino, sem delegar à orfandade o que envio para o mundo. Perdoem-me por não ser uma. Só”.

Foto da Autora
Nota:
O texto foi publicado também no site de Ana Lúcia Vasconcelos - "Sal da Terra Luz do Mundo":
http://saldaterraluzdomundo.net/literatura_contos_margaridas.html
E houve ainda a publicação no Portal Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4763

sábado, 14 de agosto de 2010

Permissão para brincar















No meu íntimo,
fundo sobre o mundo
um templo sem portas.
Meu ser emudece;
o interesse de tudo escoa no cimo das horas.

O tinteiro observa como se tivesse olhos.

Moer a revolta e devolvê-la num beijo
(entender-me é o meu recreio)
Em branco, elaboro a fuga
e deixo um bilhete de existir.


Foto-Mar-TT                                                                 

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Tán hermosa


O teu corpo vê,
mas não a tua mão.
De ponta a ponta
com a fúria encarcerada
num olhar incolor
Instala uma ferida
sobre a minha sina,
Que restauro com arnica.

Como quem sobe a duna e admira
a demora do sol sobre os seios,
Eu soube não indagar se era uma aposta,
O meu palco a sua veste entreaberta.

No momento máximo de não estar acordado
Dorme sonâmbulo
o suor com a sua claridade.

O meu holofote que apreendo
passado um certo tempo
Um ensaio partido ao meio
– Enquanto passeio
pelos livros, letras se despem
e viram folhas –
Como veias abertas:
meus anseios.



Imagem- Renoir (girl sleeping)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Reflexões de um seguidor


Reflexões de um seguidor

Não esperava coerência. Enquanto ouvia um “olá, como vai”, administrava a intenção de estar se saindo bem. A simulação do real tornara-se mais interessante à medida que presenciava modelos encontrados no mundo das próprias idéias.

Quando recorria ao imaginário procurava de alguma forma confrontar-se com a realidade. A leitura, antes de mero entretenimento ou universo fictício, era um lenitivo a lançar luzes ao seu modo de ver os sentimentos, uma forma de se divertir, entreter, tocar o coração e clarificar as tessituras da inteligência, além de permitir-lhe um distanciamento, ainda que minúsculo, das vicissitudes impostas pelo cotidiano.

O inviolável prazer de filtrar-se no enredo, no caráter e na personalidade dos personagens o revestiam de irresistível fascínio.

A utopia, lugar e não-lugar passavam a povoar com indescritível fluidez um imponente invólucro de subjetividade; novas eficiências que fazia questão de não interromper.

A magnitude de um alter-ego revelador de aspectos éticos e psíquicos eternamente discutíveis denunciava o erro de rebaixar a experiência direta da vida em função de “outro mundo” como condutor da essência perfeita da personalidade humana, como se a realidade fosse algo enfraquecido. Considerava essa idéia a madrasta de todas as ilusões. Quem não gostaria de uma segunda vida? O simulacro é um risco tão inevitável quanto à atitude de Narciso quando se atirou à própria imagem refletida na água para sucumbir afogado.

Talvez se iludisse por sensatez. A inconseqüência nem sempre seria nociva. A hiper-realidade era, por vezes, capaz de suplantar seu próprio ser. Pouco sabia do intangível e anônimo regresso da verdade implícita em todas as imperfeições.

Embora reconhecesse as presenças espectrais como as mais reais e invisíveis, não se preocupava em deixar esquecidos nomes e rostos, paisagens e almas que nutriam com fé inabalável o que estava ao alcance dos olhos e do toque por revelar-lhes, com todas as interfaces e misérias, a alegria trágica de não querer estar para além daquela janela de braços amigos a socorrê-lo quando, ao sonhar que dormia, caísse em queda livre sobre a cidade.

Tela-Observadores-TT

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Exposição Mar És






Enviado em 28 de mai de 2010
Entrevista com a Artista Plástica e escritora cascavelense Tere Tavares.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Mar és


CONVITE
Caros Amigos e Amigas
É com imensurável alegria que vos participo
 a exposição
Mar és,
misto de marinhas e poesias,
elaboradas pela madurez de perscrutações e sentidos das artes que especulo desde sempre, e que agora ousam, mais uma vez, se apresentar.

A abertura acontece em 06 de maio próximo no
Centro Cultural Gilberto Mayer,
(confiram  detalhes nas imagens/textos abaixo),
e permanece para visitação até 01 de junho de 2010.


quarta-feira, 24 de março de 2010

ordenanças

foram as lágrimas
escaladas
que reconstruíram os meus olhos
de ausência e silêncio
de não obscurecer o tempo
que, ingrato, nubla de ansiedade a minha alma.
 
de que me valem os dias sem a obra-prima
deslizando do que não vê?
o esmero de haver a cor mais sublime
se é isento o céu que me vive?
 
encontro o vazio em toda a plenitude
e não tento, senão em vão
e insana, reencontrar-me em sua lição
isuportavelmente perfeita.
  •  

domingo, 7 de março de 2010

Para cada momento uma palavra


As formas de grafar o tempo:
este canto infinito
que detém o comando,
este Deus que,
em cada partícula,
imprime a sua marca.

Eu o vejo nesta bela colina
antes mesmo de ser mencionado.
Observo a graciosidade
que se desprende da sua plenitude
como se pudesse sujeitar à razão
o que é isto.

E é um juízo final que não chega
e chega com verbos e rubores,
ou a tal ponto cede ao delírio,
que esta mínima parte
deste Deus que me habita
tem livre expressão
e me guia docemente.


  • Foto- Pombo -TT 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Tempo de Lírios


E nem era primavera. Ajustou as meias e os cordões dos sapatos. O tom flamingo se espelhava em cada partícula da paisagem. Dialogando com as abstrações, o instinto persistente da consciência desprovido de qualquer disfarce. As formas brancas, curvas, de centros amarelos e perfumes inolvidáveis permaneciam num emudecido encontro com tudo. A intolerante pergunta era só mais um pássaro entre outros dez mil pássaros pousados em suas vestes. Porque tudo é encontro? A partir dali não haveria brisa.

Reconheceu de imediato o desassossego entrelaçado das árvores. Chegara, finalmente. E era como se também tivessem chegado o ardor pulsante do que não se extinguiria.

Quem sabe do regresso, quem pode dizer sobre o que parte e acorda da sombra, da saga vulgar dos impulsos, das substâncias e rupturas floridas da ilusão que, a cada irromper do amanhã, desprezam algo de si mesmas? Desabrochar é um vício necessário. Do espírito.

Haveria de se perder tantas vezes quantas fossem sublimadas as suas forças. Tinha a impressão de levar consigo mais do que lhe era possível.

Soprando de um lugar ignorado um retalho igualmente irreconhecível debruçava-se sobre a nudez da claridade – a segregação de tudo quanto era conhecido e tênue. “Talvez não fosse eu” disse sobriamente.

Tudo parecia se materializar, a despeito das folhas caídas e dos anseios impacientes.

No jardim, no instante lento e perplexo do luar, nem o pai, nem o irmão, nem os filhos. Só uma crédula brancura. A que, irredutivelmente, colhia na sinuosidade do próprio rosto.

Editado a partir do original publicado em:
http://historiaspossiveis.wordpress.com/2010/02/07/tempo-de-lirios/

Foto - Lírios -TT

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Homem que brilhava


Andou para um lado e para outro. Seu entusiasmo não sabia se diria adeus à liberdade ou reconhecia onde estava. Ali o esperava o mar, aquele mar que podia contemplar por intermináveis momentos, e sempre mostraria algo diverso: uma concha, uma profundidade mais transparente, o rastro de uma nuvem, o rumo de outra corrente e as instantâneas ondulações espumando na margem. O som que ouvia assemelhava-se ao terno perfume de um presente recebido há muito tempo, bem distante.
Cada sensação era um tesouro inestimável, de uma euforia irreflexiva, como se pertencesse a um todo que imediatamente se desintegrasse. Onde acabaria alguém de alma demasiado sensível? “Aqui tens o coração de um homem”.

Não podia parar. Era para si mesmo um reflexo luminoso desprovido de qualquer significado. Olhava-se como a gaivota olha o cardume ou como o cardume olha o pássaro. Era um sondar repleto, de luz profunda, uma recompensa inolvidável do prazer de quem vê além do simples esforço das pupilas. Era-lhe irrefragável o sorriso, quase inocente, como quem soubesse ter guardados muitos mais para trazer aos lábios. Seguiu olhando ininterruptamente. Algo brilhava na areia limpa. A água morna molhava seus pés. Não recordava onde havia deixado a última lembrança, tampouco queria encontrá-la. Novamente percebeu o brilho na areia. Inclinou-se e recolheu o que lhe parecia ser um metal precioso. Já contava com algo. Fez uma pequena pausa. Em sua multidão de silêncios a voz do mar era o próprio corpo do mar que o domava e o refazia. Estendeu as mãos contra o sol. O brilho sumiu por entre os dedos. Consumiram-se os elos das coisas secretas.

Uma suave ironia marcou sua fronte persistente. Sorriu com a mesma bondade de antes. O mar agora era verde, brilhantemente verde e solitário. Com a cabeça inclinada caminhou como sabem caminhar os que não perdem jamais o que tanto se custa a conseguir ou não tem qualquer preocupação com as vis necessidades humanas – alimento, descanso ou amor.

Como se entrelaçado em incomensuráveis variantes e obviedades dirigiu-se ao indefinível com a doçura de quem só podia murmurar: “Aqui tens uma estrela mais intensa do que a minha”.
Tela: Rocha e Mar-TT

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009



Queridos Amigos e Amigas,


Desejo a todos um Feliz Natal e Ano Novo!


Saúde, paz, amor, amizade, prosperidade, inspiração!




  • Foto-Romãs-TT